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Memórias de 1977

A resistência à ditadura na Faculdade de Direito da USP



Manifestação de estudantes no Largo São Francisco, em 19 de maio de 1997 Acervo Comissão de Anistia/Arquivo Nacional
Manifestação de estudantes no Largo São Francisco, em 19 de maio de 1997 Acervo Comissão de Anistia/Arquivo Nacional

Março de 1977. O presidente da república, Ernesto Geisel, havia sido designado fazia três anos e ainda permaneceria no poder por mais dois. Em São Paulo, o governador Paulo Egydio contava com um legítimo representante da linha mais dura da repressão no cargo de secretário de segurança pública: o coronel Erasmo Dias, um velho ranzinza e mal encarado que por vezes era visto num bar na esquina da Avenida Senador Pinheiro Machado, no Canal 1 da cidade de Santos. Erasmo Dias era empenhado mesmo em reprimir o movimento estudantil. Os estudantes lutavam pela legalização da União Nacional dos Estudantes - UNE, que havia sido dissolvida quando do Golpe de 1964, mas que ainda resistia clandestinamente. A ideia era realizar o 31º Congresso, no mês de setembro, na PUC-SP.


Um dos polos de resistência à ditadura era a Faculdade de Direito da USP. Os estudantes haviam elegido um grupo chamado "Movimento Oposição" para dirigir o Centro Acadêmico XI de Agôsto. Escolheram para encabeçar a chapa um educado e moderado estudante. Ao seu redor, havia um pequeno grupo de sustentação. Nós, os calouros daquele ano, fomos todos partícipes da "reascenso" do Movimento Estudantil. Muito em razão do empenho daquela gestão, que contava com a participação de representantes de diversas tendências políticas: o antigo grupo "23 de Junho", formado principalmente por simpatizantes da tendência "Caminhando", colegas ligados à "Refazendo", alguns nomes próximos à Reforma e à Hora do Povo e outro tanto de estudantes independentes que simplesmente ignoravam a existência de vínculo entre as correntes políticas e as organizações de esquerda.


A recepção dos calouros foi muito bem organizada, com show de cantores como Marília Medalha e Antonio Adolfo e palestras do teatrólogo Plínio Marcos e de políticos como Paulo Brossard e Teotônio Vilella, na Sala dos Estudantes. Era nesse mesmo espaço que realizávamos as assembleias estudantis. Foi lá que testemunhei pela primeira vez na vida a existência de simpatizantes do nazismo: um grupo de quatro ou cinco rapazes de cabelos curtos, agitando bandeira com a suástica. Era o famigerado PLA - Partido Libertador Acadêmico, da extrema-direita estudantil, que aplaudia a explosão das bancas de jornal que vendessem jornais de oposição como o "Movimento".


Fomos chamados para participar do Jornal do Calouro (o "Idéia", na época com acento agudo no "é"), do Coral Acadêmico, da Academia de Letras, da Atlética (que não curtíamos tanto, pois era o reduto da direita), do Cineclube (onde conheci o Caíto Gomide), do Teatro do XI (dirigido pelo querido Lino Rojas). Enfim, havia atividade cultural em tempo integral, além de churrasco no campo de futebol no Ibirapuera.


Em abril, Geisel decretou o fechamento do Congresso Nacional e publicou uma série de atos institucionais e alterações legislativas. Todavia, a irrelevância do Congresso Nacional em termos de força política de oposição era tão grande que esse gesto simbolizava mais prepotência do que efetividade. Havia, é verdade, uma oposição consentida, por parte do MDB, mas não mais do que isso.


A partir do Pacote de Abril, foi criada a figura do "senador biônico": um terço do Senado Federal seria nomeado indiretamente por um colégio eleitoral controlado pela ditadura e não por voto direto. O mandato presidencial, por outro lado, passou a ser de seis anos. Estes foram os retrocessos mais evidentes, que tiveram por consequência ampliar a revolta do movimento estudantil.


Em setembro, os estudantes da São Francisco, irmanados com os da PUC-SP, foram encurralados pela polícia de Erasmo Dias. Caderninhos com nomes e telefones de colegas eram picados nos banheiros da universidade para evitar comprometimento de colegas. Bombas de gás lacrimogênio eram atiradas na direção dos estudantes por uma violenta polícia montada, como se fôssemos uma força inimiga do país. Em resposta à repressão, entoávamos a canção de Geraldo Vandré: somos todos iguais, braços dados ou não.

 

Naquele ano tornei-me amigo de pessoas com quem continuaria a me relacionar ao longo de toda a vida — alguns deles meus professores, como o saudoso Dalmo Dallari. É difícil separar na memória o que foi luta política do que foi formação humana. A repressão estava nas ruas, nas salas de aula, nos jornais censurados — mas também nos silêncios entre colegas, no medo de seremos flagrados nas fotos tiradas pelo Xaxá, nas ausências que doíam mais do que os discursos.


Ainda assim, em 1977, aprendemos mais do que qualquer currículo de uma faculdade de direito poderia prever. Aprendemos que as instituições morrem quando nos rendemos ao cinismo, e que resistir é um modo de permanecer digno diante da brutalidade. Em meio à precariedade das assembleias, aos encontros sussurrados nos corredores e à esperança improvisada nas vozes de Marília Medalha e Plínio Marcos, descobrimos o que significava ser adultos num país onde era proibido sonhar.

 


Guilherme José Purvin de Figueiredo, professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado/SP Aposentado, é graduado em Direito e Letras pela USP, Doutor e Mestre, Pós-Doutorando junto à FFLCH-USP, desenvolvendo pesquisa no âmbito da Geografia, Literatura e Arte. Membro do IBAP. É autor e organizador de diversos livros da Terra Redonda Editora, entre eles "Virando o Ipiranga" (2021, finalista do Prêmio Oceanos), "Paredes descascadas" (2023) e o recém-lançado "Onde começa o hemisfério" (2025).


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