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De bar em bar XII: E por falar em Semana de Arte Moderna de 22…

Mouzar Benedito, no Blog da Boitempo, em 6/03/2012


Um piano, um violino, um bandoneón e três velhinhos tocando eram bons motivos para se ir à Confeitaria Vienense, no primeiro andar de um prédio da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo. Fora isso, havia a comida, a bebida e os frequentadores. Diziam que os participantes da Semana de Arte Moderna de 1922 frequentavam a Vienense. E, lá por volta de 1974, eu dizia que os sobreviventes dela continuavam frequentando. Tirando meia dúzia de jovens atípicos, o que tinha lá era um pessoal meio fora de época, velhinhos e velhinhas, arrumadinhos e arrumadinhas, saboreando, às vezes, um chá com bolachas e bolos, ao som de músicas de antigamente, por sinal muito apreciáveis também. Os músicos, para mim, eram os mesmos que deviam ter tocado para Tarsila, Pagu (que não estava na Semana de Arte Moderna, mas depois se incorporou ao grupo), Oswald e Mário de Andrade.


Nunca fui lá para os tradicionais chás da tarde, meu horário sempre foi mais noturno. E como o lugar era muito calmo e escondido, cheguei a usar a confeitaria como ponto de encontros políticos clandestinos. Mas muitas vezes ia mesmo à Vienense para beber e ouvir música.


Numa noite de quarta-feira, tomávamos chope e comíamos salgadinhos na confeitaria, ao som de um tango tocado com toda a dedicação, baixinho, quando começou uma discussão na mesa ao lado, ocupada por um casal de meia idade. Mesmo que eu não quisesse ouvir, não tinha jeito. O tom de voz deles chegava à minha mesa não muito alto, mas o suficiente para não ter como ignorar a conversa. Ela estava grávida e ele era o responsável. Ela queria casar-se e ter o filho, ele não queria uma coisa nem outra. Tentava evitar a discussão, recomendando que ela ouvisse a música tocada pelos velhinhos.


A certa altura, sem mais argumentos para usar, ela começou a chorar baixinho. Os músicos, percebendo a situação desagradável, aumentaram um pouco o volume (eu que não sou músico, até hoje não sei como se aumenta o volume do piano, do bandoneón e do violino) para abafar o choro. Ela começou a chorar mais alto, eles passaram a tocar mais alto. Ela chorou mais alto ainda, parecendo querer envolver as mesas vizinhas na questão do casal, e os músicos revidaram com acordes mais estridentes. Fora as pessoas mais próximas, ninguém entendia o que estava acontecendo. Só se percebia que a música estava cada vez mais alta.


Bem, para resumir, chegou a um ponto em que os músicos extraíam de seus instrumentos o máximo de volume que podiam, e a mulher não tinha desistido de competir com eles, para ganhar a atenção do público. Chorava ainda mais alto! O tocador de bandoneón fez um sinal desesperado para o maître, que em seguida abordou o casal litigante:


— Olha, mais alto que isso, nossos músicos não tocam. E como não queremos que nossos fregueses venham aqui para ouvir choro, solicitamos que se retirem, por favor.

Eles saíram sem pagar, ele dizendo que ela tinha engravidado porque quis, a música voltou ao normal e eu propus à amiga que me acompanhava:


— Se a conta ficar muito alta, você começa a chorar baixinho. Depois vai aumentando, aumentando…


Mas há muitas outras histórias acontecidas ali. Lembro-me do Mendes, que gostava de ir lá só pra tomar conhaque barato. Ele se impressionava com o garçom trazendo copo apropriado para conhaque legítimo, devidamente aquecido, e servindo com todo o ritual uma beberagem vagabunda.


Voltando aos encontros clandestinos: havia uma mesa grande, afastada das demais. Nela, em 1968 e 69, fazíamos muitas reuniões políticas. Muitas “ações”, que não passavam de panfletagens contra a ditadura, foram planejadas ali. E comemoradas também.


Se existisse ainda, seria um bom lugar para se comemorar os 90 anos da Semana de Arte Moderna, né?


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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Pela Terra Redonda Editora, Mouzar publicou em 2021, em parceria com Ohi, o livro "O Voo da Canoa", à venda em nosso site.

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