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Livros de memórias atualizam a luta contra os crimes da ditadura militar de 1964

Terra Redonda combate o esquecimento com relatos emocionantes dos impactos do regime militar na vida das pessoas.


Foto: Ricardo Carvalho

Memórias e biografias compõem um dos principais eixos editoriais da Terra Redonda, desde a criação da editora. Assim, já são vários títulos nossos que resgatam experiências e vivências, pessoais ou coletivas, dos tempos do regime militar iniciado em 1964. Essas publicações têm colaborado para manter vivas as lembranças dos crimes cometidos naquele período e mantendo a atualidade da luta contra eles, e pela reparação ainda devida a muitas de suas vítimas.


Dentre esses livros, o mais recente é “Não nos calamos”, que reúne depoimentos de 15 estudantes que ingressaram por volta de 1968 na então recém-criada Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB). Os relatos do livro registram como os autores vivenciaram momentos decisivos para a consolidação de sua faculdade, para o combate à ditadura e para a constituição de uma consciência crítica em suas vidas pessoais e profissionais por mais de 50 anos. No livro, o médico Valdemar Pinho, até hoje radicado em Botucatu, SP, relembra: “Em outubro de 1974, o Pedro veio a Botucatu relatar como foi sequestrado e torturado pelo DOI-Codi, mas seu interesse era avisar que alguns seriam os próximos. Dentre eles, eu. O que fazer? Passar à clandestinidade? Buscar exílio em uma representação estrangeira? Há algum tempo vários companheiros da direção da Ação Popular vinham sendo presos, mortos ou ‘desaparecidos’. Decidi ficar e aguardar o que viesse”.


Militância na periferia”, também uma coletânea, com mais de 30 autores, organizada por Benedita Creuza de Andrade, é um livro que resgata histórias e personagens de cinco décadas de lutas na Região Sudeste da cidade de São Paulo. E a ditadura militar de 1964 é cenário para muitas dessas histórias. No livro, Benedita Creuza e Reinaldo Silva relatam: “Através do conhecimento da Teologia da libertação, os militantes e lideranças desenvolveram as lutas populares e movimentos sociais, articuladas com o nosso evangelho. Acreditávamos que juntos seriamos capazes de transformar uma sociedade selvagem, em que todos os brasileiros sofreram por um golpe de Estado que reuniu militares, policiais e políticos, e por longo período, nos impôs um regime de ditadura, que marginalizou muitas pessoas, em especial a juventude.


No livro “Receitas da Zilah”, que traz as receitas caseiras de Zilah Wendel Abramo, acompanhadas por crônicas de pessoas de sua família e amigas, a ditadura também está presente. É Laís, filha de Zilah, quem traz seu relato na crônica “Mingau de farinha láctea na resistência à ditadura militar”: “Estávamos no 2º semestre de 1964, de volta a São Paulo depois da tremenda derrota representada pelo golpe militar de abril daquele ano, da prisão e demissão do meu pai da UnB. Estávamos temporariamente hospedados na casa da minha avó materna Placídia. Eu tinha 10 anos, o Mário 8, a Lena 6 e a Bia pouco mais de um ano. Minha mãe tinha 37 e meu pai 35 anos. Uma tarde, eu cheguei da escola e minha mãe estava dando mingau de farinha láctea para a Bia, que estava sentada no cadeirão de madeira. Ela (minha mãe) devia estar bem deprimida e sentindo o peso de tudo o que estava acontecendo naquele momento. Virou pra mim com uma cara entre compenetrada e triste e me disse: – ‘Minha filha, tem horas que a única coisa que a gente pode fazer é cuidar e alimentar bem os filhos pra eles crescerem fortes e saudáveis e continuarem a lutar pelo que a gente acha certo nesse mundo’ “.


O consagrado livro “Por um Triz”, de Ricardo de Azevedo, que ganhou sua 3ª edição em 2020, traz o precioso relado do autor sobre os 12 anos em que atuou como militante e dirigente da organização Ação Popular, durante a ditadura. Ele conta: “Depois do AI-5 (Ato Institucional no 5), promulgado no dia 13 de dezembro de 1968, a barra tinha pesado mais ainda. A organização baixara novas normas de segurança a serem rigorosamente cumpridas. Nenhum militante deveria ir à casa de outro ou entrar diretamente em local de reunião, pois existia sempre a hipótese de que aquele local tivesse ‘caído’ e a repressão estivesse esperando para prender quem chegasse. Todos os encontros tinham que ser feitos na rua, em locais que não chamassem a atenção, como pontos de ônibus ou padarias. Eram os ‘pontos’”.


Na autobiografia “Relatos de uma vida inteira”, José Flávio de Oliveira apresenta em seu testemunho um dos mais marcantes relatos de tortura no DOI-Codi de São Paulo, mas pontuado pela resistência e solidariedade entre as vítimas: “Entre nós, o que mais sofreu foi o Licurgo, já falecido. Foi torturado barbaramente, juntamente com sua companheira e a filhinha, de colo, que ele adorava e nela falava o tempo todo. Um dia foi levado e só voltou muito mais tarde, um bagaço, jogado ao chão, com muitas marcas pelo corpo e sangue escorrendo. A Sônia havia me enviado uns Danoninhos, por intermédio do carcereiro Xano, o ’bonzinho’. Repassei-os ao Licurgo e isso lhe ajudou a recuperar as forças. Ele nunca mais se esqueceu disso e sempre que nos encontrávamos, se lembrava do episódio e agradecia”.


Em “O Cardeal e o Repórter”, cuja 2ª edição foi lançada no final 2020, o jornalista Ricardo Carvalho retrata importantes momentos em que conviveu com dom Paulo Evaristo Arns. O livro recebeu o Prêmio Vladimir Herzog e nele o autor conta: “Em outra reportagem, foi dom Paulo, em pessoa, que me passou a pauta que permitiu que fossem encontradas as primeiras crianças até então consideradas desaparecidas da América Latina, filhas de militantes políticos e que foram sequestradas pelas forças de segurança do continente, na Operação Condor. Sem contar o medo que passei em Montevidéu, correndo atrás das famílias das crianças. Ao lado do repórter fotográfico Helio Campos Mello, encontramos o corpo do primeiro desaparecido brasileiro, Luis Tejera Lisboa, enterrado no cemitério de Perus, ao lado da capital paulista. A reportagem mereceu uma capa memorável da revista Isto É e a pauta partiu da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos, sob o comando de dom Paulo”.


No perfil biográfico “Aloysio Biondi – Resistência ética e grandeza no jornalismo”, a também jornalista Thais Sauaya, falecida precocemente em 2009, conta a trajetória profissional do principal criador do jornalismo econômico no Brasil. E essa trajetória foi permeada, entre 1964 e 1985, pelas marcas da ditadura militar: “A censura prévia endurecia juntamente com a ditadura, atingindo não apenas os meios de comunicação, mas também toda a produção cultural e científica do país. A posse do general Emílio Garrastazu Médici, em 30 de outubro, inaugura os “anos de chumbo”, período de violenta perseguição e repressão aos opositores do governo que só teve fim no mandato de seu sucessor, Ernesto Geisel. Sob o governo Médici, centenas de pessoas sofreram perseguições, prisões ilegais, exílio, torturas e assassinatos; shows, filmes, peças e músicas foram mutilados ou simplesmente proibidos de serem apresentados”.


Para a Terra Redonda Editora a publicação desses livros é nossa maneira de continuarmos afirmando cotidianamente: Ditadura nunca mais!


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