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Livro autobiográfico traz relato inédito de tortura na Oban, durante a ditadura militar

A memória desse crime hediondo demonstra que para ele não cabe perdão.


José Flávio de Oliveira, no livro Relatos de uma vida inteira (Terra Redonda)


No dia 4/9/1973, quando era tarde da noite, parecia que o risco já havia passado e nos preparávamos para dormir, a campainha tocou, longa e estridente. Esfriei, conhecia muito bem aquele tipo de presença, violenta, arrogante. Fui até a porta, olhei pelo olho mágico e vi a cara do velho porteiro noturno colada à porta e com os olhos esbugalhados. Abri, e lá estava um sujeito grandalhão, segurando o pescoço do porteiro por trás com uma das mãos e com a outra segurando um revólver com o cano encostado na cabeça do pobre senhor, que tremia mais do que vara verde. Mais quatro agentes faziam parte da operação. Alguns deitados ao chão do corredor, outros em pé, todos com armas pesadas, engatilhadas e apontadas para mim em posição de tiro. Um deles, reconheci, era o mesmo que me havia seguido pela manhã. Muito corajosos!



Aberta a porta, mandaram o porteiro voltar para seu lugar e calar a boca. A Sônia ficou nos fundos do apartamento, encurralada e pouco entendendo a razão daquilo tudo, que, aliás, era nenhuma. Confesso que narrar esses fatos agora, desenterrando-os da poeira do tempo, me reavivam sentimentos estranhos e misturados, de raiva, tristeza, tensão, angústia, medo e humilhação, sei lá, mas que não imaginava ainda existirem. Pensei que já houvesse superado completamente esses momentos de terror, mas não. Continuemos, pois! Os tiras entraram em minha casa com a brutalidade e o açodamento que lhes era peculiar. Revistaram tudo e não acharam nada, começaram a ficar preocupados se não teriam errado o endereço. Eu fazia-me de tolo, e perguntava do que se tratava? Eles, em dúvidas, respondiam que era uma batida contra o consumo de drogas, desconversando. Até que um deles, não o que me havia seguido, revirou o cesto de roupas sujas e reconheceu a camisa que eu estava usando durante o encontro com o Pedro Calmon. Regozijou-se e comunicou a todos que eu era eu mesmo. Animaram-se e vasculharam os rascunhos da tese de mestrado que eu estava escrevendo e viram nos manuscritos a palavra burguesia. Pronto, não só era eu mesmo, como se tratava de um perigoso terrorista. Acharam um radinho portátil e levaram dizendo tratar-se de uma prova importante, pois era o meio de comunicação do meu aparelho, o apartamento, com minha organização terrorista. Seria hilário, não fosse o quinto dos infernos.


Levaram-nos ao estacionamento do prédio, empurraram-nos para o banco traseiro de um carro, colocaram capuzes negros em nossas cabeças, mandaram que abaixássemos as cabeças e começaram a rodar em alta velocidade por um longo tempo. Aterrorizei-me, pois achava que, pela distância que supunha estar sendo percorrida, estariam nos levando para o “Sítio do Fleury”, lugar do qual dificilmente se saía vivo. Aliviei-me quando percebi, pelas conversas, que nos levavam para a Oban, a Organização Bandeirante.


Oban e DOI-Codi, em São Paulo, eram quase a mesma coisa, uma organização semiclandestina em simbiose com o Destacamento de Operações e Informações do Exército. A Oban era financiada pela alta burguesia, principalmente por empresários ligados à Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Reunia integrantes da Aeronáutica, Marinha e Exército, Dops, SNI e Cenimar, destinados a combater quem se opunha ao regime militar usando métodos “não convencionais”, como prisões sem ordem judicial, sequestro, tortura, roubos, abusos sexuais e assassinatos. Muitos de seus agentes fizeram cursos de especialização nos EUA, na CIA, com o objetivo de aprimorar os métodos de tortura. Dizem não ter sido incomum que membros da Fiesp, das organizações de direita e banqueiros comparecessem às seções de tortura para se comprazerem com os suplícios infligidos às pessoas. Puro sadismo e ódio. Esse assunto foi muito bem abordado no filme “Cidadão Boilesen”, dirigido por Chain Litewski.


Foi nessa conjuntura política que eu, a Sônia e mais um grupo de pessoas, especialmente as que tinham algum tipo de ligação com a APML, entramos na Oban, localizada numa Delegacia de Polícia, na Rua Tutóia, onde havia uma passagem para o quartel do 2º Exército. Ao chegarmos, sempre de capuz negro na cabeça, fomos colocados num grande banco de madeira, num lugar que parecia uma saleta de espera. Dali se podia ouvir os gritos lancinantes de várias pessoas sendo torturadas ao mesmo tempo. Como ainda não conhecia os instrumentos e métodos de tortura modernos, embora tivesse ouvido falar do pau-de-arara, a imagem que eu fazia do que estava ouvindo vinha de filmes sobre a Inquisição na Idade Média. Imaginei as pessoas amarradas a uma grande roda de madeira, sendo submetidas a queimaduras com ferros em brasa, afogamentos e chibatadas. Mal sabia que a realidade poderia ser pior.


Tempo de espera. Para mim, o pior momento sempre foi o tempo de espera. Vão me matar, não vão me matar? Vou ser torturado, não vou ser torturado? Vão torturar a Sônia? O que farão com ela? Qual será o método? O que me perguntarão? Vou aguentar, não vou aguentar? Sobre o que irão me interrogar? O que posso falar e o que não devo falar em hipótese alguma? Apesar do pavor, essas perguntas foram ajudando-me a organizar o cérebro, definir o comportamento mais adequado, bem como as possíveis respostas aos interrogatórios. Em alguns momentos, essas reflexões eram interrompidas pela entrada de outros presos. Lembro-me da chegada de um homem. Mesmo com os olhos cobertos pelo capuz, pude perceber que resistia com todas as forças, que era grande e difícil de ser dominado. Gritava que eles estavam espancando um herói de 1964. O barulho era grande, de porradas, corpos e coisas caindo ao chão. Nunca fiquei sabendo de quem se tratava e o significado de tais frases, mas me desconcentrou. Ou então quando, por um momento, a Sônia ficou perto de mim e segredou-me que tinha levantado o capuz disfarçadamente e visto chegar um colega do curso de Geografia. Menina curiosa e desobediente! Era o Waldemir.


Ficamos lá juntos durante toda aquela madrugada, o dia, a noite e as madrugadas seguintes. Às vezes, juntos e, às vezes, separados. Nada de perguntas, só acusação, intimidação, espancamento, ameaça e exposição a situações de sofrimento e humilhações, permeadas de “generosos conselhos” para falar, confessar, porque, afinal, eles já sabiam de tudo. Todos os meus amigos já haviam falado. Ora era posto de castigo, em pé ou ajoelhado com os braços abertos, tal qual uma cruz, por longo tempo, ora recebia socos no estomago, na cabeça, tapas na cara. Apanhei com tacos de bilhar e fui jogado ao chão no meio de cães que latiam, pulavam e babavam sobre meu corpo estendido. Isso tudo sem que nada pudesse ver ou fazer para impedir as agressões, mesmo que fosse com uma simples rigidez corporal ou um movimento do corpo que pudesse minimizar e defender-me do ataque sofrido, pois permanecia de capuz na cabeça e as agressões eram cometidas quando menos eu esperava.

A Sônia levou tapas na cara, vertendo sangue pelo nariz. Era como se fosse um vestibular do sofrimento, um preparo para a tortura, que haveria de ser terrível, conforme prometiam. Um policial se fazia de generoso e compreensivo comigo, mas avisava que seus colegas podiam ser muito maus. Chamava-se Dulcídio Vanderlei Boschilia. Árbitro de futebol, famoso por ameaçar e bater nos jogadores. Quando avisaram a Sônia de que ela seria liberada, mas não eu, ela teve um gesto que surpreendeu os tiras e disse que não sairia sem ver seu marido. Deixaram que ela ficasse um pouco ao meu lado, mas impedida de falar. Contudo, em um cochilo dos homens, pude lhe dar alguns conselhos e ela se foi um pouco mais tranquila.

Depois disso, permaneci na mesma situação por mais um ou dois dias. Então, me levaram a outra sala, tiraram o capuz e disseram-me, ao atravessar uma porta, que eu iria conhecer o verdadeiro braço clandestino da ditadura. Na sala não havia nada, a não ser uma mesa tipo escritório. Na porta um vidro amarelado, através do qual mal se via o outro lado, mas por onde eu podia ser visto. Fiquei nesse local um tempão, sem nada acontecer, ver e ouvir quem ou o que fosse, a não ser os gritos das pessoas sendo torturadas. Percebi que a intenção deles era minar meu sistema psicológico e emocional. Em determinado momento, fui levado até a porta de outra sala e obrigado a olhar através do vidro. Vi uma pessoa, era uma mulher, mas eu nunca a tinha visto antes. Perguntaram-me se a reconhecia, eu disse a verdade. Nunca a tinha visto antes!


Depois, já fora da cadeia, soube que essa moça era a Bia, mulher do Waldemir. Era, provavelmente, a pessoa com quem eu iria estabelecer o contato que não chegou a acontecer. Ao retornar à sala, embora aterrorizado, procurei exagerar nos traços, buscando aparentar uma fragilidade maior do que a real, para dar-lhes a certeza de que eu não precisaria ser submetido à tortura para tudo falar. Andava em círculos, fumava um cigarro atrás do outro, olhava para um lado e para o outro. Agachava, ficava em pé, andava, andava. Cena de absoluto descontrole emocional, dirigida, em parte.


Em meio a essa encenação, um sujeito abre a porta e, sem nada dizer, conduz-me a outra sala, apresentando-me a Cadeira do Dragão, um cadeirão tosco de madeira com apoio para os braços, recobertos de latão, como o assento e o encosto. Ao seu lado, uma traquitana sobre a mesa tinha uma manivela da qual saiam vários fios com as extremidades desencapadas. Num canto, cavaletes, canos de ferro e cordas, artefatos para montagem do pau-de-arara. Também se encontravam à mostra as palmatórias de madeira e os chicotes. No chão, muito sangue espalhado. Ao derredor, um monte de homens horrorosos esperando-me com grande ansiedade, pois iria começar um novo espetáculo de terror.


Mandaram que eu tirasse os sapatos e as meias e me sentasse no trono. Hesitei, mas depois obedeci. Embora eu tenha buscado apagar por completo esse momento da minha memória, lembro-me fugidiamente de que amarraram os fios da tal traquitana nos meus pulsos e tornozelos. Tudo isso sem nada me perguntarem. Tinha apenas a ordem de falar tudo o que sabia, mas como eu não sabia de nada, nada dizia. Hora do inferno, rodaram a merda da traquitana, segurei, rodaram de novo, não segurei. Gritei para pararem, pois eu sabia do que se tratava e que iria falar tudo o que eles queriam, mas um dos torturadores, guarda da PM, o carcereiro, ficou decepcionado e rodou novamente a traquitana.


Em seguida, colocaram-me em outra sala sentado em uma cadeira na frente do inquisidor e sua escrivaninha. Eu havia elaborado uma estratégia para essa situação. Haveria de contar uma estória, a mais verossímil possível, sem contradições e que batesse inteiramente com as informações de que eles, certamente, já dispunham, especialmente sobre os últimos acontecimentos, que deveriam estar mais vivos na memória deles, mas omitiria as que pudessem me complicar ou implicar outras pessoas.


O inquisidor era o chefe de uma das três equipes de tortura, o Doutor José, seu nome de guerra. Era um delegado de polícia vaidoso, usava botinhas de cano curto. Após a ditadura, fiquei sabendo que ele havia se mudado para uma cidade no interior de São Paulo, Fernandópolis ou Jales, e por lá ficou, exercendo o papel de delegado de polícia. Era metido a psicólogo, num dos dias em que me interrogou, posteriormente, utilizou-se dos borrões de Rorschach. Nessa ocasião, depois de algumas interpretações óbvias, procurei tirá-lo do foco do interrogatório e comecei a divagar sobre a cientificidade do método. Ele cansou e mandou-me retornar à cela.

No primeiro interrogatório, eu tinha construído previamente um método e um caminho para as respostas. Comecei um jogo perigoso e com muito cuidado, era um fio de navalha, devia negar envolvimento, mas sem exagerar na inocência. De pronto, joguei, declarei enfaticamente ao interrogador saber que o motivo de minha detenção não era relacionado a drogas, como havia me afirmado a equipe de captura, mas, provavelmente, por motivos políticos, que havia estudado em Brasília, que fazia pós-graduação na USP e que era professor de História. Perguntou-me o que eu havia feito e qual meu envolvimento com a AP? Respondi que nenhum, que meu conhecimento da AP se dava pelo noticiário dos jornais. Perguntou-me se conhecia alguém da AP. Respondi que sim, o Pedro Calmon. Descrevi-o fisicamente e narrei a forma pela qual o havia conhecido, bem como meu último encontro com ele, nos mínimos detalhes, horário, ruas percorridas e a roupa que trajava, porque sabia ter sido seguido e porque ele tinha me dito que, caso eu caísse, nada deveria omitir sobre ele, pois eles já o conheciam. Ao final, fiquei com a impressão de que o interrogador havia se convencido de que eu lhe tinha dado a real e que eu não devia ter grande participação política, mesmo, e nem muita coisa a revelar. O que não deixava de ser verdade, embora parcial.


Depois disso, não sei quanto tempo, fui mandado para uma cela, o X3. Lá estavam dois militantes da AP, o Licurgo e o Waldemir, mas eu não os conhecia e nem eles a mim. No início, ficamos distantes e desconfiados uns dos outros. Com o tempo, fomos aos poucos nos aproximando, mas falávamos somente generalidades. O Waldemir e o Licurgo falavam-se mais, percebi que tinham relações anteriores, mas não quis saber do que se tratava, bastava-me o que já tinha que guardar. Decidi que três coisas eu não abriria para ninguém, de jeito nenhum: a) a questão do encontro e do dia em que faria intermediação do pessoal da AP de São Paulo com o pessoal que tinha vindo de Brasília e com o Honestino Guimarães; b) os nomes das pessoas que integravam o grupo de Brasília; c) e o endereço do Dorgival, embora eu acreditasse que ele já tivesse fugido. Quanto ao dia do encontro, eu ficava contando nos dedos para passarem logo. Que se fosse torturado além dos meus limites de resistência e obrigado a revelar tal fato, que ocorresse depois do dia do encontro, assim não haveria o risco de a pessoa ser identificada, bem como da minha estória ir por água abaixo. Olhando agora, de longe, não sei se isso tinha muito sentido, mas na época eu achava que sim.


Iniciava-se, assim, a nervosa rotina do cárcere na condição de preso incomunicável. Havia outras pessoas presas nas demais celas, mas não tínhamos como nos ver e nem nos falar. Um muro separava as celas entre um lado e outro. A cela, um cubículo sem janelas com uma grade de ferro na frente, dava para um corredor a céu aberto. Dentro, uma privada turca e um cano de água fria. Não me lembro se havia pia. No chão de cimento queimado, alguns colchonetes velhos e rasgados. Foram 2 meses, divididos em dois tempos. O primeiro, cruel e angustiante, no qual prosseguiram os interrogatórios e seções de torturas. O segundo tempo, mais ameno, quando consideravam já terem extraído dos presos todas as informações. Foi uma fase de curar as feridas, fazer declaração de próprio punho e, em seguida, ser libertado ou ser encaminhado ao Dops, para a formalização do processo. De qualquer forma, o momento era melhor e as perspectivas também, de sair do inferno ou deixar de ser incomunicável.


Enquanto estávamos lá, passaram outras pessoas, mas permaneceram por pouco tempo. Entre essas, um casal de estudantes do ITA; um latino, que se dizia velho cadeeiro, e um grandalhão, esportista, praticante de remo, forte e que pertenceria a Polop. Esse último, ao chegar, apanhou a noite inteira de chicote com bolinhas de aço presas nas extremidades. De madrugada, ele foi jogado em nossa cela com as costas lanhadas e ensanguentadas. Prestamos os socorros que estavam ao nosso alcance, mas não dispúnhamos de condições para realizar os curativos necessários. Disse que fizeram aquilo com ele porque havia alegado ter problemas na coluna e que, se colocado no pau-de-arara, poderia morrer.

Com o tempo, aprendemos a decodificar os sinais de que alguém iria para o pau ou de que se estaria a salvo naquele dia ou, pelo menos, naquele momento. Os sinais de que algum de nós seria interrogado e torturado eram percebidos por portas batidas com violência, rádios ligados em volume altíssimo e pelo barulho de ferros sendo jogados ao chão. Esses ruídos incomodaram-me, mesmo muito tempo após ter saído da prisão. Em contraponto ao barulho excessivo dos torturadores, os presos políticos faziam um silêncio gritante. Torcia-se para não ser o chamado da vez, assim como o colega da cela ou as pessoas próximas. Outro sinal era o não fornecimento de refeições para aqueles que iriam ser torturados. Em contraponto, quem recebesse a refeição normalmente podia ficar sossegado, pois não seria submetido a sofrimentos naquele dia.


Entre nós, o que mais sofreu foi o Licurgo, já falecido. Foi torturado barbaramente, juntamente com sua companheira e a filhinha, de colo, que ele adorava e nela falava o tempo todo. Um dia foi levado e só voltou muito mais tarde, um bagaço, jogado ao chão, com muitas marcas pelo corpo e sangue escorrendo. A Sônia havia me enviado uns Danoninhos, por intermédio do carcereiro Xano, o "bonzinho”. Repassei-os ao Licurgo e isso lhe ajudou a recuperar as forças. Ele nunca mais se esqueceu disso e sempre que nos encontrávamos, se lembrava do episódio e agradecia. O Waldemir também sofreu bastante, colocado no pau-de-arara, levou palmatória, recebeu pancadas e muitos choques que lhe queimaram por baixo da língua, o pênis e outras partes sensíveis do corpo.


Quanto a mim, quando fui chamado para ser interrogado outras vezes e por outras equipes, sempre repeti a mesma estória inicial, sem tirar nem por. Em uma das vezes, deram-me álbuns de fotografias de militantes de diferentes organizações, entre eles da AP, pedindo-me que apontasse quem eu conhecia. Todos os de Brasília eram meus conhecidos, mas decidi apontar apenas um deles, o Nelson Machado. Antes de ser preso, eu o tinha visitado quando estava preso na Cepaigo, ocasião em que me revelou ter sido interrogado sobre minha participação na organização e que ele havia negado reiteradamente, dizendo que eu era apenas um amigo, tendo sofrido por isso.

Eu disse a mesma coisa ao meu interrogador, que o Nelson era um amigo e nada mais. Não fui pressionado, talvez por só estarem interessados no pessoal de São Paulo, o caso de Brasília estava resolvido há tempos e o Nelson, inclusive, já estava cumprindo pena. Em outra seção, o interrogador apresentou-me um documento datilografado, no qual eu confessava ser militante de base da APML do Brasil, aconselhando-me a assiná-lo, porque a partir disso eu iria para o Dops e nada mais sofreria, teria no máximo uma pena bem pequena. Neguei-me a assinar. Ele, contrariado, mandou mudar a redação e colocar que eu era um simpatizante. Neguei novamente e joguei com certo risco, declarando que assinaria qualquer coisa que me colocassem na frente, pois eles eram mais fortes, tinham armas e poderes, mas seria uma mentira, uma injustiça, e se era isso que eles queriam de mim, que eu mentisse? Contrariado, mandou-me de volta à cela sem que eu assinasse coisa alguma.

Passado um tempo, fui chamado novamente, deram-me uma folha de papel almaço para que eu fizesse uma declaração de próprio punho. Fiz um texto curto, qualifiquei-me e disse que era um cidadão brasileiro preso indevidamente e que aguardava ser colocado em liberdade o mais rápido possível. Com meus companheiros de cela, Waldemir e Licurgo, as coisas se passaram de forma assemelhada, com a diferença de que eles foram transferidos para um presídio, processados e condenados por um tribunal de exceção a cumprirem a pena estabelecida. A partir de então, ninguém estava mais sendo torturado ou inquirido.


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José Flávio de Oliveira é professor e educador ambiental aposentado. Publicou sua autobriografia Relatos de uma vida inteira pela Terra Redonda. O relato acima é um trecho desse livro.

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