Em livro, Beatriz Di Giorgi e Sandra Martinelli são intérpretes mútuas
Beto Furquim
Tradução simultânea, lançamento da editora Terra Redonda, é mais que um livro de poemas e desenhos. É o resultado de um projeto criativo que explora o limite do despojamento e da espontaneidade. O título diz respeito ao diálogo de sensibilidades promovido pelas autoras, ambas paulistanas: a poeta e advogada Beatriz Di Giorgi, autora de diversos livros desses dois universos de interesse, e a artista multimídia Sandra Martinelli. Duas amigas de longa data que já haviam feito parcerias anteriores nessa mesma busca de amalgamar linguagens artísticas.
Durante vários encontros entre 2020 e 2022, já tendo como ponto de partida e inspiração um conjunto de poemas de Beatriz, a pintora (também escultora e videomaker, entre outras incursões) desenhou a poeta de corpo inteiro, em diversas posições, a partir de diferentes pontos de vista. A intimidade entre elas garantiu toda a liberdade aos traços rápidos, sem retoques, sem melindres. As 73 Beatrizes desenhadas são bem diferentes umas das outras. A subjetividade da representação por vezes lembra as engraçadas distorções de salas de espelhos côncavos e convexos que aumentam e encolhem partes do corpo. Sandra desenha sua modelo muito mais viva do que modelar. O corpo desenhado está sempre vestido, mas isso não impede que Beatriz seja desnudada pelo olhar ousado da artista, não por acaso a primeira fotógrafa autorretratada na capa da Playboy brasileira.
As imagens nos lembram: para viver e incorporar a poesia, é preciso ter um corpo. E aqui ressalta uma tendência geral a representações em que a cabeça proporcionalmente ocupa bem menos espaço ,por exemplo, que as pernas. Algo bem significativo, pode-se interpretar, para a travessia implícita na ideia de traduzir, de transitar em direção ao lugar do outro.
Essa Beatriz não verbal, e que talvez se pareça com alguém em busca de ser menos mental, reverbera, seja como contraponto, seja como enfatização, a Beatriz verbal sugerida pelo eu poético. Como a que diz, a propósito, no poema “Interdito” (p 123): [...] Tenho para mim que precisamos resgatar urgente Nossa legítima e genuína nudez [...] Ou a que, ao mesmo tempo que valorizao pathos, reconhece o ethos como imprescindível, como em “Defesa” (p 145): Não tenho o corpo fechado, Apenas uma alma inquieta E algumas poucas armas. Por isso desde cedo teço, com amor, a retórica, Para ocasiões especiais Em que me calar É o mesmo que me matar.
Em primeira pessoa
Toda poesia é autorreferente por definição, mas talvez Beatriz se inscreva entre os autores que assumem a opção explícitada escrita como lugar não só dessa expressão necessariamente pessoal como também de auto-observação. O eu como primeira pessoa dos verbos e também como objeto do olhar, seu assunto.
No universo desse sujeito protagonista, tudo se funde. Não só a poeta com sua poesia. Veemência e perplexidade, ironia e ingenuidade deliberada, epifania e melancolia, medo e brio, sensatez e delírio. Tudo vibra num corpo só, em tensão com sentidos intercambiáveis, como sugere este trecho de “Ao remetente (ou interlocutor)” (p 139):
[...]
Sem desprezar o prazer, protejo-me do pensamento circular Que assombra ao amalgamar os contrários.
Amar e amargar no mesmo pacote de destino. [...]
E, nessa tradução simultânea e vertiginosa, não há idioma original. Nenhuma língua é suficientemente estrangeira. A intérprete é também autora, a modelo também pinta. É isso que acontece no oitavo e último capítulo do livro, Trocando Papéis. Nele, ainda é mantida a alternância de texto e imagem que caracteriza as 208 páginas do livro. Mas agora é Beatriz que experimenta os traços, e Sandra, as palavras.
Assim, como se estivesse flagrando duas crianças que acabaram de descobrir uma nova brincadeira, o leitor encerra seu passeio pela Tradução simultânea. E é instigado a pensar sobre o lugar do artista, esse ser que nunca poderia abrir mão da própria e por vezes intraduzível linguagem, evidentemente. Mas menos ainda de seu papel de intérprete, em busca de uma conexão com o mundo que reafirme e fortaleça a profunda, inequívoca mas combalida ideia de humanidade.
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Beto Furquim é compositor e intérprete de canções, editor e autor de textos.
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