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As configurações do anjo e do deserto na poesia de Alexandre Bonafim

Victor Oliveira Mateus

Capa: Ilustração Daniel El Dibujo

O livro O anjo entre o deserto e o não, de Alexandre Bonafim, insere-se numa temática que tem, ao longo dos séculos, percorrido a cultura ocidental: o deserto enquanto apelo e fonte de saber e de transmutação do indivíduo que ousa vislumbrá-lo e percorrê-lo. Contudo, essa persistência temática em diversos autores não conduz a uma homogeneização dos resultados, já que cada olhar enforma de uma experiencia vivida específica e de um sistema de valores e de crenças individual; poderemos, eventualmente, encontrar zonas que se tangenciam nas diversas abordagens, mas sem que a originalidade de cada uma delas seja posta em causa.


O deserto em Alexandre Bonafim apresenta, assim, algumas características fundamentais: encontra-se associado ao dizer (O deserto diz / com simplicidade / a luz); (Dizer o verdadeiro poema/ é sempre ter a língua amputada); relaciona-se com a interioridade e a ação (Dentro dos meus pulsos/ um deserto desatou a ira/ dos cavalos selvagens); é apanágio de poucos: daqueles que decidem empreender a aprendizagem poética enquanto técnica linguística e que ousam trilhar esse caminho.


O percurso intentado pelo poeta não é coisa pacífica (Nada no mundo pode abrigar/ essa dor estrangeira/ extraterrena/(…) que perfura meus ossos/ meus sonhos), é, por conseguinte, não só uma senda eivada de obstáculos, por vezes tumultuosos, mas sobretudo uma aprendizagem que recusa todo o tipo de solipsismo; afirma-se antes como um acrescentamento do eu mediante uma relação dialógica com o meio e com o outro, e são estes os dois últimos vetores o fundamental deste O anjo entre o deserto e o não, aliás, tal como aparecem em grandes escritores de outras nacionalidades. Empreendendo uma dialética em relação a esse vazio do deserto, o poeta acrescenta ainda a forte presença do outro, metaforicamente já anunciado no título (anjo): presença desejada, presença amada, mas muitas vezes também presença como germe de mágoa e de desalento. A aprendizagem dos afetos é, neste livro e indubitavelmente, uma apreensão não resultante de um qualquer delírio ou de uma relação fantasiada, mas de uma constante interiorização obtida através de um complexo e contínuo diálogo com o mundo natural, com a palavra e com o outro, outro esse, por vezes, sob a figuração de uma forte proximidade afetiva.


Dialeto


Teu rosto

jorro de uma palavra

na plenitude

de um idioma cego

(...)


Teu rosto

orquídea

melancólica

vermelha

como a fuga

dos garças

rumo ao sul


Há, no entanto, neste livro, uma deliberada urdidura da ambiguidade, que remete o leitor, em dadas circunstâncias, para uma interconexão de referentes, como se estivéssemos ante uma encantada casa de espelhos, onde o poeta tanto pode estar a falar de um outro exterior a si, como de si próprio, como ainda do cume absoluto da sua arte: o dizer poético, e caberá ao leitor, recusando todo o tipo de passividade, aceitar o desafio e fazer-se cúmplice desta aventura poética, deste deserto; um exemplo disto a que poderei chamar uma ambiguidade triádica poderá ser encontrada no poema Cigano:


Ele caminha entre o silêncio e o não


Nos lábios o veneno

a rosa vermelha

esmagada pela melancolia


Ele sempre busca a ardência

a caricia de um delicado algoz


Outra figuração do deserto de Bonafim pode ser encontrada na sua maleabilidade estrutural. Dito de outro modo, este deserto pode surgir nos momentos mais inesperados e nos contextos mais imperscrutáveis: na infância, no quotidiano, na afetividade (Deitei-me sobre tua pegada// De mim restou-me apenas/ o leve contorno do teu não), na memória (Entre meus sonhos/ queima o que foi/ o que não foi/ como a faca/ a perfurar na cicatriz/ uma nova ferida). Poder-se-á dizer deste deserto o que o filósofo Michael Foessel disse da Noite : “De fato, nem todos os eclipses são astrais: a noite pode surgir em contextos imprevistos e, às vezes, simplesmente porque os indivíduos decidem isso “ (1). Também o deserto de Alexandre Bonafim não se deixa espartilhar por quaisquer mapas ou cartografia, ele é uma instância muito mais lata e rica; é essa parcela do Ser cujo atravessamento, por vezes sofrido, trará ao poeta uma nova e enriquecida aprendizagem do Todo. Este tipo de hermenêutica do deserto pode ser encontrado também em muitos dos poetas portugueses – e foram vários! – que nas últimas décadas poetaram sobre o tema, veja-se o caso de Isabel Cristina Pires (2) – no poema Mapa-Múndi: (No mapa do mundo/ há um lugar/ onde ninguém foi./ Dói-nos/ esplendidamente.) e no poema Este Tempo Rápido do Mundo: (Este tempo rápido do mundo/ rouba-nos o corpo à dança sem relógio/ e dói no coração comido pelo nada./ Leva-nos consigo para dentro da aridez). Em ambos os casos, quer a poetisa portuguesa, quer o poeta brasileiro, filiam-se num continuum onde o metapoético se mescla com uma espinhosa aprendizagem, atente-se, a título de exemplo, às palavras de Alexandre Bonafim:


Poética


Poesia se faz

com arame farpado

contra a carne crua

contra a pele nua


Todavia, apesar dos dois poetas perfilharem uma conceção abrangente do deserto, há na escrita de Cristina Pires um pertinaz modo de olhar uma temporalidade específica e um cosmopolitismo não detetáveis em Bonafim, que opta, antes, por uma sensualidade, um erotismo e um alto lirismo raros na poesia contemporânea escrita em português, aliás, não é por acaso que ele no seu livro utiliza uma epígrafe de Dora Ferreira da Silva: dois versos dessa poeta maior que, no século XX, escreveu em português.


Neste livro de Alexandre Bonafim, o deserto desemboca num enraizamento quadrifendido do caminhante, simbolizando este o humano no seu passar pelo aqui: o amor-paixão à boa maneira de Stendhal como pode ser visto no poema Teu abraço; o alcançar de uma regenerada voz poética detetável no poema Poética; uma recuperação do corpo (do outro amado? Do texto? De ambos?) como assinala o poema Orgasmo e, finalmente, uma apreensão, em lucidez e verdade, do eu:


Palavra secreta


Eu sou o homem dos olhos impuros

mas minha boca pode ver o anjo de seis asas


Minha boca pronuncia a inocência

do mais ardiloso vício


Eis a aprendizagem feita através do deserto de Bonafim! Um acolhimento, como acima se disse, feito em clarividência e autenticidade: do amor, do corpo, da poesia e do humano. Este deserto demarca-se, portanto, de tantos outros, como o de Buzzati (3), do qual tudo se esperava e de onde nada de importante vinha, e que mais não era do que uma mera fronteira de ansiosas esperas: de rituais, de envelhecimentos e mortes; o deserto de Alexandre Bonafim é, ao invés, uma mescla de territorialidade e de experiências passionais e ontológicas.


Em O anjo entre o deserto e o não, numa cuidada urdidura de vaivém, num luminoso filigranado de imagens e de conseguidos processos de metaforização, Alexandre Bonafim dá-nos o fruto do seu apurado cismar poético: uma constelação, onde, como já referi, o amor, o corpo, o humano e a poesia se entrelaçam.


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Notas

1 Foessel, Michael. La Nuit, vivre sans témoin. Paris: Éditions Autrement, 2017, p 156.

2 Pires, Isabel Cristina. Deserto Pintado. Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

3 Buzzati, Dino. O Deserto dos Tártaros. Barcarena: Marcador Editora, 2014.


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Victor Oliveira Mateus, poeta português, é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa. Autor de oito livros de poesia – dos quais se destacam Pelo deserto as minhas mãos (Coisas de Ler, 2004), A irresistível voz de Ionatos (Editora Labirinto, 2009), Regresso (Editora Labirinto, 2010) e Negro marfim (Editora Labirinto, 2015) - e de vários textos em prosa. Suas obras foram publicadas na Espanha, Itália, no Brasil, México, Equador, em Moçambique, Porto Rico e Macau.


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