Depoimento de Zilda Noronha Miné resgata trajetóris da avó, Luísa Maranhão.
Sergio Alli
Em 1850, sob forte pressão da Inglaterra, o imperador Pedro II sancionou a Lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico internacional de pessoas escravizadas para o Brasil. Entretanto, apesar das medidas repressivas adotadas pelo governo imperial, o tráfico clandestino continuou ativo por pelo menos uma década. Por volta de 1860, um navio vindo da África aportou em São Luís do Maranhão trazendo em seu porão uma família inteira escravizada, inclusive a filha caçula, de apenas 2 anos. Foram todos vendidos a um fazendeiro. Como era comum, foram batizados e obrigados a adotar a religião católica. A menina mais nova recebeu o nome de Luísa, em referência à cidade.
Nos anos seguintes, o aumento da repressão ao tráfico internacional fez crescer o comércio interno de escravizados entre diferentes regiões do Brasil. Ao mesmo tempo, a produção do algodão, monocultura disseminada no Maranhão, entrou em forte crise, em virtude da queda do preço do tecido na Europa. Muitos proprietários, endividados, passaram a negociar seus escravos. Ainda adolescente, Luísa foi vendida a um fazendeiro paulista, por 400 ou 500 réis. Nunca mais esqueceria a dor de ser afastada para sempre de sua mãe e de seus irmãos. Durante o resto da vida contaria aquela cena da separação. Lembrava das palavras da mãe, quando lhe deu um pequeno saco com pepitas de ouro e umas pedras valiosas: - Olha, Luísa, você leva isto bem guardado e quando carecer de alguma coisa, você vende ou troca por aquilo que estiver precisando.
Contendo o choro, Luísa pegou o presente e partiu. Quando chegou ao alto mar, dominada pela revolta e a raiva, jogou tudo nas águas. Depois, buscou algum conforto nas orações. Mesmo tendo sido imposta, a formação na igreja tornou a menina profundamente religiosa.
Luísa chegou ao novo cativeiro em 1872 ou 1873. Era uma grande fazendo em Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, onde se concentravam os “barões do café”, que compunham boa parte dos paulistas mais poderosos. O café representava, naquele período, mais da metade das exportações brasileiras.
A jovem escravizada passou a ser chamada de Luísa Maranhão. Como era forte e disposta, foi mandada para a lida na roça. Ia sempre à frente de uma fila de cativos e tinha como função dar o ritmo do trabalho. Sua revolta contida, porém, às vezes aflorava. Certo dia, depois de ouvir desaforos de seu feitor, partiu para cima dele com a enxada nas mãos. Foi contida por outros escravizados e, como era praxe nessas situações, castigada com muitos açoites.
Durante alguns anos, trabalhou no café. Um dia, ao passar pela casa do senhor, uma das cozinheiras lhe disse:
- Luísa, prepare-se, porque vão fazer você casar com o Paulo.
Paulo Orozimbo também tinha sido um cativo do dono de Luísa. Com economias juntadas durante anos, comprou sua própria carta de alforria. Porém, sem outra alternativa, continuou trabalhando para o mesmo senhor. Era tido como um homem bom. Luísa, porém, não gostou da notícia. Seu pretendente já era viúvo e tinha um filho adulto, igualmente liberto. Por isso, falou para a cozinheira:
- Com o Paulo? Ainda se fosse com o filho dele.
- Mas não é com o filho, não. Diz que é com o Paulo mesmo.
A contrariedade de Luísa chegou até a sinhá, mulher do fazendeiro. Quando Paulo Orozimbo foi procurá-la para falar de suas intenções com a Luísa, ela ponderou:
- Paulo, vê se arranja outra mucama, a Luísa é tão nova pra você.
- Não posso, sinhá. É a Luísa que eu quero.
Luísa não teve como escapar e acabou casando. Pelo menos, isso a libertou da condição de escravizada. Resignou-se e dedicou-se ao trabalho e à criação dos filhos. Em pouco tempo, vários nasceram, todos homens, entre eles Amâncio, Fernando e Cornélio. O marido, Paulo Orozimbo, morreu poucos anos depois, sem deixar lembrança. Luísa, que jamais gostara dele, se casou novamente. Quando estava com quase 40 anos, teve, finalmente, a sua menina, Durvalina.
Por muitos anos, Luísa passou, com a família, pelas lavouras de café, de safra em safra, em diferentes cidades do Vale do Paraíba. Quando Durvalina nasceu, viviam em Lorena. Os filhos foram crescendo e começaram a ganhar o mundo. Amâncio foi o primeiro a vir para a capital. Empregou-se como caseiro em uma fazenda na Zona Leste. Tempos depois, veio a família toda. Moraram uns anos na Penha e depois mudaram para a Rua José de Alencar, a rua da estação dos bondes, no Brás.
No começo do século XX, Luísa Maranhão e a filha foram morar num local próximo à Rua da Consolação. Durvalina trabalhava como empregada doméstica e, nas horas vagas, costurava para fora. Cuidou da mãe, por quem nutria grande carinho, até 1926, quando Luísa faleceu, aos 78 anos. Durvalina herdou dela a religiosidade e a incansável disposição para o trabalho.
Em 1929, Durvalina começou a dar aulas de catecismo. O primeiro espaço que conseguiu para sua catequese foi no recém inaugurado Parque São Jorge, sede do Corinthians e ponto de encontro de jovens operários e operárias. Suas aulas ocorriam num galpão vazio, onde havia apenas alguns bancos de tábuas. Algumas vezes, Durvalina levava sua jovem sobrinha Zilda Noronha Miné, que a partir daí se tornaria companhia constante em sua ação religiosa.
O trabalho de Durvalina foi um dos primeiros núcleos de organização do operariado católico em São Paulo. Em seguida, surgiram os Círculos Operários Católicos, que incentivavam a sindicalização de seus membros, para concorrer com a influência dos comunistas e anarquistas nas entidades de classe e disseminar a doutrina católica.
No final da década de 1940, Durvalina e suas sobrinhas Zilda e Ilda participaram da formação da JOC, a Juventude Operária Católica, no bairro do Belém. Havia uma grande agitação política e sindical. O bairro da Mooca, vizinho ao Belém, era um dos principais redutos do Partido Comunista Brasileiro. Em novembro de 1947, o PCB, mesmo na clandestinidade, conseguiu eleger, com os votos da região, 3 vereadores na capital, inscritos em outros partidos.
Zilda eventualmente participava de reuniões do Sindicato dos Empregados da Indústria Têxtil, mas divergia bastante de sua direção. Nessa época, as irmãs Zilda e Ilda Noronha Miné trabalhavam numa tecelagem de seda no Belém. Foram as primeiras negras admitidas como operárias nessa fábrica, rompendo uma barreira racista que ainda era bastante generalizada, mais de 50 anos depois do fim do período escravista.
No começo dos anos 1950, Fernando, irmão de Durvalina, empregou-se como caseiro em um sítio na região onde hoje fica o Morumbi. O proprietário era Silvio Campos, membro da Ação Católica e dirigente do Partido Democrata Cristão. Durvalina costumava visitar o irmão nos fins de semana e feriados. Nessas ocasiões, ficava hospedada na região do Ferreira, na casa de sua amiga Odila Luz. O pai dela, Juvenal, era dono de muitas terras e de uma rinha de briga de galo que era o grande ponto de diversão das redondezas.
Ao perceber a ausência da Igreja Católica na região, Durvalina começou a fazer o que já sabia muito bem, dar aulas de catecismo para crianças e jovens. Para ajudar, seu irmão construiu uma casinha para ela ficar quando fosse fazer seu trabalho por ali. Já era uma casa de tijolos, mas ficou sem porta durante alguns anos, só com uma cortina de estopa e uma cadeira atrás. Foi uma fase de muitas dificuldades, mas Durvalina compensava com sua boa vontade e a dedicação à causa da religião.
Durvalina e suas duas sobrinhas, Zilda e Ilda, aproveitavam intensamente suas noites e os fins de semana para diversas atividades pastorais e de militância na JOC. Isso incluía reuniões gerais da Ação Católica, onde conheceram um grupo de mulheres da JIC (Juventude Independente Católica). Eram jovens profissionais, a maioria professoras, filhas de famílias abastadas, que dedicavam-se ao trabalho pastoral e social.
Cada vez mais animada com seu trabalho no Ferreira, Durvalina resolveu comprar um terreno no bairro. Escolheu um lugar barato, perto de um charco e coberto de mato. Entretanto, tinha uma vertente bonita, que lhe pouparia o trabalho de mandar fazer um poço.
Com muitas relações na igreja, Durvalina conhecia alguns membros da Ordem dos Carmelitas Descalços, que possuía uma chácara próxima ao atual centro de Taboão da Serra, onde padres e seminaristas passavam as férias. No verão de 1954, aproveitando que também tinha férias na tecelagem do Belém e que a chácara não era muito distante de seu terreno, Durvalina foi trabalhar como cozinheira para os Carmelitas do Taboão. Lá, o frei Crisóstomo sugeriu a ela a construção de uma capelinha, para ampliar o trabalho pastoral que já realizava.
Com apoio de seu irmão Fernando, das sobrinhas e das amigas da JIC, Durvalina começo a construir a capela. Catarina Leão contribuiu com 2 mil réis, Maria Grabois com mil réis, Edith Bógus e Edith Azevedo Marques também ajudaram. Em uma olaria do bairro ela conseguiu a doação dos tijolos. Assim, a capela foi erguida. Depois dela, veio um pequeno salão comunitário. No início dos anos 1960, Durvalina e Zilda doaram seu terreno, com capela e tudo, para a criação do Centro de Convivência Gracinha, o primeiro trabalho social da Associação Pela Família, uma ONG filantrópica fundada em 1956 pelas amigas da JIC.
Veja abaixo trechos do depoimento de Zilda Noronha Miné ao Museu da Pessoa.
Nota do editor
O texto desta postagem é resultado de um depoimento que me foi prestado em 2006 por Zilda Noronha Miné e Ilda Noronha Miné, então com 88 e 84 anos, respectivamente, para a confecção da publicação Encontros, de comemoração dos 50 anos da Associação pela Família.
A Associação pela Família funciona até hoje e é a mantenedora da Escola Nossa Senhora das Graças, também conhecida como Gracinha, que funciona no bairro do Itaim Bibi. Em 1963, Ilda Noronha Miné deixou a tecelagem e tornou-se funcionária da Escola Nossa Senhora Graças, onde permaneceu até 1984. Ela faleceu em novembro de 2009.
O Centro Gracinha foi mantido em funcionamento até 2020, com verbas decorrentes do caráter filantrópico da Associação Pela Família. Com a pandemia, as mudanças nas leis de financiamento da filantropia e da assistência a social, e do fato de que o antigo prédio tornou-se obsoleto o projeto tornou-se inviável e foi definitivamente encerrado.
Zilda Noronha Miné prestou outro importante depoimento ao Museu da Pessoa, em 19 de novembro de 2009, no qual também fala das histórias contadas nesta postagem. Foi entrevistada por Márcia Trezza e Caroline Pitta. A entrevista na íntegra ao Museu da Pessoa e o texto transcrito podem ser acessados clicando AQUI.
O vídeo reproduzido acima é parte do depoimento de Zilda Noronha Miné ao Museu da Pessoa e foi editado por Jean Henrique Lourenço, que se autodefine como jornalista, bixa preta, e utiliza as narrativas afrocentradas como manifestação de vida. Nascido e criado no interior de Minas Gerais, acredita na potência dos corpos pretos e suas histórias. O vídeo compõe a mostra audiovisual (Entre)vivências Negras, uma mostra virtual de produções audiovisuais de autoria negra, a partir de histórias de vida de pessoas negras do acervo do Museu da Pessoa. A iniciativa é parte da programação Vidas Negras, em cartaz no Museu da Pessoa entre setembro de 2020 e janeiro de 2021.
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Sergio Alli é editor da Terra Redonda e autor de 13 anos de Lula e Dilma.
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