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60 anos de Ditadura Militar: como a periferia de SP resistiu

Marcos Zibordi, na coluna Visão do Corre, no Portal Terra, 31/03/2024


Ativistas atuantes na região sudeste da capital paulista durante a Ditadura Militar. Foto: Marcos Zibordi

Como há 60 anos, estão a postos: convocados para entrevista sobre a luta contra o golpe militar na periferia de São Paulo, mulheres e homens, hoje respeitáveis senhoras e senhores, chegam na hora marcada, no sábado de feriado prolongado antes da Páscoa e do desonroso aniversário de 60 anos do golpe militar, apoiado por civis.


Estamos no Centro Popular de Defesa dos Direitos Humanos Frei Tito de Alencar Lima, em Americanópolis, zona sul de São Paulo. A avenida Cupecê passa duas quadras acima, atravessando a região de bairros como Cidade Ademar, Jardim Miriam, Pedreira, Vila Santa Catarina e Vila Clara.


Nos anos 60, “era só mato, chácara e terra”, descreve Antônio Manoel dos Santos, 69 anos, um adolescente na Ditadura Militar. Havia uma linha de ônibus, até Diadema, queda de morros e ruas de lama em períodos de chuva, dificuldades de sobrevivência e a atuação de grupos de extermínio.


Matadores disfarçados de justiceiros


Mulheres reunidas na inauguração do Centro Frei Tito, fundado em 1987. Foto: Centro Frei Tito

Na memória dos cinco ativistas que entrevistamos, está viva a imagem aterrorizante de cabo Hélio, um Policial Militar que fazia suas próprias leis. Com o mesmo nome, mas identificado pelo aumentativo, Helião era outro criminoso com ares de justiceiro. Ele mantinha uma delegacia clandestina onde até bêbado apanhava na zona sul.


Além deles, estava em plena atividade o famoso cabo Bruno, outro PM, morador da Pedreira, que aterrorizava a região. Famoso matador de dezenas de seres humanos, ainda hoje é idolatrado por alguns. “Quando não matava, batiam, torturavam, queimava com cigarro”, conta Antônio Manoel dos Santos.


Segundo ele, em Americanópolis a lei era feita policiais disfarçados de justiceiros, com a ideologia militar. Santos foi preso por “vadiagem” quando estava em frente a um bar. Muita gente rodou por estar conversando com amigos.

 

Matança de jovens negros


No fundão da zonal sul, durante a Ditadura Militar era comum ver corpos de jovens negros mortos, especialmente da favela Cidade Azul. Praticamente nenhum era criminoso. Muitas vezes as vítimas foram assassinadas porque não tinham Carteira de Trabalho.


Centro Popular de Defesa dos Direitos Humanos Frei Tito de Alencar Lima. Foto: Marcos Zibordi

“Deixavam os corpos em posição humilhante, ninguém tinha coragem, sequer, de cobrir com jornal, porque poderia virar testemunha. Ficavam um tempão jogados na rua”, conta Marilene Camargo, 75 anos, uma doce professora que deu aulas clandestinas durante a Ditadura Militar.

 

Segundo Benedita Creuza de Andrade, 66 anos, “a gente não entendia porque eram quase todos pretos. Hoje sabemos que havia o racismo”. Mas a periferia não se curvou.

Mães, sobretudo as que perderam seus filhos, se organizaram com a ajuda de padres ligados à Teologia da Libertação, que pregava uma igreja voltada aos pobres, defensora de causas sociais, como educação e moradia.

 

Padres e igrejas subversivas


Igrejas e seus líderes católicos jamais serão esquecidos pelos ativistas, a minoria ligada a algum movimento revolucionário organizado. A maioria estava simplesmente lutando por seus direitos, sem consciência muito clara da real situação política.

 

Igreja Nossa Senhora Aparecida, onde atuava o padre José Rezende nos anos 70. Foto: Marcos Zibordi

“A gente veio aprendendo, nem sabia que éramos ativistas”, diz Paulo Nakamura, 76 anos. Ligado aos movimentos sociais da zona sul e morador da região, ia para a zona leste dar aulas clandestinas junto com a esposa, Marilene Camargo. O casal se conheceu na Universidade de São Paulo (USP), na graduação.

 

 

Ativistas se articulavam em ações sociais nas igrejas Nossa Senhora Aparecida, São Pedro e Santa Catarina, ainda funcionando na zona sul. Nelas, havia religiosos preocupados com o povão, como os padres Rezende, Ângelo e Vidal, falecidos. “Hoje tem delação premiada, antes era pau de arara mesmo”, conta o então metalúrgico Miguel Tadeu de Carvalho, 68 anos.

 

Ativistas como ele, padres e mães organizavam educação de adultos, atuavam na luta por moradia e contra o que se chamava de “carestia”, as dificuldades de sobrevivência dos pobres. A comida era cara e racionada no mercado.

 

Mulheres na linha de frente


“O que eu comecei a aprender de Ditadura Militar foi com minha mãe e suas amigas. Éramos em sete filhos e minha mãe me levava para as reuniões do grupo de domésticas”, lembra Zulmira Alves da Fonseca, 57 anos, uma das organizadoras do livro Rexistência tem Voz de Mulher, sobre a luta de mães da zona sul contra a Ditadura Militar, lançado no ano passado.


Igreja São Pedro, onde padres progressistas organizavam a luta popular. Foto: Marcos Zibordi

Essas reuniões tinham à frente guerreiras como Luzia Alves Basílio, falecida, e aconteciam em igrejas e casas, clandestinamente. “A gente chegou a fazer passeata batendo panela. Hoje é simples fazer isso. Mas a gente corria todos os riscos”, conta Benedita Creuza de Andrade, organizadora do livro Militância na Periferia, de 2023.

 

Mulheres organizadas promoviam cursos de corte e costura, panificação. Lutavam por justiça aos filhos mortos. Reivindicaram e conseguiram a primeira creche e posto de saúde na região. E continuam na luta, o que justifica a pergunta: e hoje, como veem o cenário político?

 

Ditadura Militar 60 anos depois


Entre as entrevistadas e entrevistados, há uma clara decepção com padres católicos, antes revolucionários, agora apoiadores da extrema direita. Admitem terem demorado a compreender essa força política que cresce no Brasil e no mundo. Reclamam da falta de articulação com os jovens.

 

Paróquia Santa Catarina de Alexandria, igreja histórica na articulação contra o golpe militar de 1964. Foto: Marcos Zibordi

Além disso, “tem muita desinformação nesse tal de celular”, diz Antônio Manoel dos Santos, que só atende pelo telefone fixo. Mas ninguém desiste da luta, como o casal Paulo Nakamura e Marilene Camargo.

 

Segundo ele, “as grandes ações são feitas de pequenas, o rio Amazonas nasce de pequenos afluentes”. A esposa completa: “Não podemos baixar a guardar. Não adianta falar, tem que fazer. Da consciência, ninguém se aposenta”.


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Os personagens e cenários desta reportagem também fazem parte das histórias contidas no livro "Militância na periferia", (Terra Redonda, 2023) organizado por Benedita Creuza de Andrade

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