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Mãe não beija

Cristiane Alves, na página JBosco Pontokom

Pontilhismo. Banhado, S. José dos Campos, 1979. JBosco Pontokom. 15X15 cm

Aos meus dois anos minha mãe largou meu pai, mas ele já tinha largado a gente há tempos. Ela só largou o bambolê vicioso. Foi difícil, como o primeiro suspiro após o parto. Doído e vivificante. E tanto necessário quanto.

Sempre que tínhamos um resquício de melhora ele voltava. E a sociedade exigia indulgência.

Voltava, sufocava, escasseava e ia. Porque ele não sabia viver a privação dos filhos dos homens. Tinha a irmã que sempre se dispunha por ele, mas apenas por ele. Nunca pelos dele, por nós.

Como naquele dia de inverno paulista, do início dos anos 70.

Não compreendo direito, mas quando se é pobre ao extremo e excluído ao extremo, a tendência é oprimir e excluir extremamente quem estiver em posição mais vulnerável. Minha tia Vivi tinha uma casa na Avenida Um. Bem à margem esquerda do rio. O rio ainda subia e inundava. Hoje não mais.

Não existia mata ciliar, mas ao longo de todo percurso do corpo d'água haviam salgueiros chorões. Às noites frias, o rio não parava de correr e os chorões balançavam com o vento canalizado no fundo do vale. As folhas faziam barulho de chuva e por vezes assoviavam um ruído de medo.

Eu tremia de frio, mas tremia de desespero, querendo chegar na casa de minha tia para me abrigar do frio. A mãe tinha passo firme, eu precisava correr para acompanhar. Íamos todos os filhos com ela.


A gente já sabia que teria guarida, mas teria humilhação também. No fim estava tudo bem, desde que tivéssemos onde ficar. Meu pai já estava lá. Sempre, nas dificuldades ele estava lá. Quente e alimentado. Era de casa. Nós não.

Quando minha mãe pegou o trem para Suzano, depois de largar meu pai, o Rogério e o Mário ficaram. E depois iriam conosco. Naquela noite o frio foi ainda mais frio. Minha tia passou o dia humilhando meu irmão que tinha apenas nove anos. Quando a gente é criança sem teto, sem mãe por perto, sem alternativa, a única é calar.

Naquele dia ele teve que comer menos. Naquele dia apanhou no rosto sem motivo, sem nem saber que era só por necessidade de descarregar frustração e maldade, sem chance de revide. Naquele dia não pode sentar.


Já à noite, não jantou. E isso era comum muitas vezes. Não pode. Sentia sono, mas não pode deitar. Apanhava no rosto toda vez que fechava os olhos para dormir, mesmo em pé. Ela, minha tia Vivi, irmã querida do meu pai, dizia que ele era um demônio e que como tal, não dormiria em sua casa.

Quando meu pai chegou da rua, meu irmão estava lá em pé, segurando o choro,

humilhado, sonolento e com fome. Então minha tia disse para meu pai: - O filho "daquela lá" não vai dormir nessa casa. Vai e leva ele na esquina e deixa ele lá. Você pode voltar. Você tem casa. Ele não.


Meu pai pegou meu irmão Rogério pela mão, andou um tempo sem falar nada, olhou para os lados, como que peocurando um lugar pra deixá-lo, e ouviu: - Pode ir. Era só até a esquina. Pode voltar, eu durmo aqui.


Talvez meu pai tenha sentido vergonha por ouvir tanta dignidade da boca de um menino. Ele deu meia volta e foi dormir com o garoto em um banheiro, num depósito de barris de óleo onde trabalhava durante o dia. Dormiram em um papelão abraçados. O frio não venceu naquele dia.

Depois minha mãe buscou o Rogério e o Mário e nunca mais se separou de qualquer um de nós. Até a visita da Ceifadora.


Sempre que perguntávamos se ela beijava meu pai quando eles namoravam ela fazia uma cara engraçada e dizia que nunca tinha beijado. Eu não duvido porque ela não gostava de beijar a gente também. Acho que gostava, mas não sabia lidar com carinho. A mãe sabia lidar com reza, benza, ervas, Pancs, com ódio, com medo. Mas não sabia beijar.

E talvez você pense o porquê dessa informação tão desencontrada. Eu mesmo não sei. Importa que carinho é tanto mais que o óbvio. Ninguém sabia olhar como ela olhava. Ninguém chegava na hora certa como ela. Ninguém sabia urrar tão alto e afastar o mal como ela fazia.

Que pena que as mães não têm prazo infinito.

Que pena que a minha precisou ir tão cedo.


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Cristiane Alves é autora da Terra Redonda Editora e já publicou Vida Maria e Um Príncipe Negro no Meu Mundo

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