Eram todos inocentes
- terraredondaltda
- 30 de out.
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Atualizado: há 3 dias
Léo Bueno

O mais doloroso é que quase ninguém, nem mesmo entre nós outros, resiste à pressão de fazer em seu discurso uma separação dos ‘inocentes’ contra os ‘outros’ - leia-se: traficantes, bandidos, monstros - dentre a centena de mortos no massacre promovido pelo confesso Cláudio Castro no Rio.
Em todo diálogo, todo comentário, fica implícito de que parte das vítimas simplesmente merecia morrer. Muitos desses colóquios são só entre nós mesmos, nem são entre nós e essa gigantesca massa sedenta de sangue e que acredita expressamente que, se a polícia matou, é porque a vítima era bandido.
Há aqui uma discrepância entre cultura e lei. A lei não permite pena de morte; mesmo que a previsse, não seria sem antes um longo processo no qual os réus tivessem supostamente o direito à presunção de inocência e à defesa irrestrita. Finda a ação, sua execução não seria levada a cabo por um desses policiais destinados a patrulhar nossas ruas. E, após tudo isso, mesmo com todos os trâmites, a pena de morte continuaria sendo - como ainda é, nos países em que existe - um mecanismo legal da barbárie, não da civilidade.
Já a cultura pressupõe que policiais matam quem merece morrer e ponto. Se a pena capital é bárbara, não há adjetivo para definir as execuções sumárias. Até em estados de guerra existem códigos legais - as Convenções de Genebra, o Direito Internacional Humanitário - que proíbem tortura e assassinato de pessoas desarmadas, mesmo militares.
Só que a gente cede à pressão do discurso majoritário. Nos deixamos levar pelo que a cientista social alemã Elisabeth Noelle-Neumann chamou de ‘Espiral do Silêncio’, que é quando as pessoas deixam de expressar suas opiniões - ou mesmo de declarar, com Justiça, aquilo que as ciências humanas já descobriram, e ciência não é palpite - por considerarem-nas impopulares. Por medo do isolamento social que elas causam.
A Espiral do Silêncio nem sempre é problemática. Ela manteve os fascistas caladinhos por décadas, embora eles nunca tenham deixado de existir; era errado ser fascista quando a imprensa, os livros, o cinema, as rodas sociais lembravam os estragos que o fascismo provocou no mundo todo.
Quando a espiral antifascista foi rompida, no entanto, deu ruim. Deu em Trump, Meloni, Duterte, Orbán, Bolsonaro. Era melhor que ela ainda existisse. É como dizem alguns memes que fazem parte da exceção, não da regra atual: saudades do tempo em que as pessoas tinham vergonha de serem idiotas. Da nova espiral, a atual, não devíamos permitir que ela nos cale acerca de verdades e conceitos importantes para garantir a primazia da civilização sobre a barbárie.
E a verdade, no caso em tela, é que, se mais de 130 pessoas foram assassinadas, se grande parte ou a maioria delas foi executada com tiros e facadas nas costas, então o aparato do Estado foi usado para cometer crimes contra a Humanidade, muito mais graves do que o tráfico de entorpecentes (cuja legalização devia ser alvo de uma discussão mais séria justamente para encerrar a ‘guerra às drogas’ criada por Richard Nixon, guerra que está ativa até hoje e na qual somos derrotados todos os dias).
Não entra, nessa verdade, a questão sobre se os mortos eram ‘culpados’ ou ‘inocentes’. Pessoas assassinadas nas ruas são vítimas e ponto, e refiro-me aqui a todas elas, inclusive aos quatro policiais que também pereceram. Quando foi dada a ordem para o confronto, os seus autores tinham noção completa da mortandade que produziriam. Se houvesse dúvida sobre isso, o fato de dezenas de rapazes desarmados terem sido executadas em área de mata fechada resolve essa dúvida.
Um dos mandantes do crime nós já sabemos quem é. Cláudio Castro confessou-o perante dezenas de repórteres, em rede nacional. Seu objetivo era surfar na onda da cultura com desprezo inegável pela lei. Logo de cara deu certo. Os batalhões de acéfalos invadiram as redes parabenizando-o. Eles não sabem o nome de uma única das vítimas do massacre - todos pretos, ou quase pretos de tão pobres -, não sabem a idade delas, não sabem que escola elas frequentaram ou o que faziam para sobreviver. Mas sabem sem sombra de dúvidas que eram bandidas.
Logo, porém, veio uma onda de rejeição contra Castro. Uma onda pequena, mas veio. Primeiro em razão das mentiras que ele declarou contra o governo federal, desmentidas pelo ministro Ricardo Lewandowski e que obrigaram o governador a proferir humilhantes desculpas no mesmo dia. Depois surgiram os colunistas e os intelectuais com alguma vergonha na cara - gente, que se não é rara, continua tendo espaços raros de manifestação em veículos de mídia.
Com eles, estamos declarando solenemente aqui, pra romper a Espiral do Silêncio: Cláudio Castro devia ser preso. Os chefes da segurança que secundaram suas decisões, idem. Os policiais, pelo menos aqueles que se afundaram na mata para executar homens inocentes, ibidem.
E, sim, todos e cada um dos homens inocentes executados pelo Estado do Rio de Janeiro eram inocentes. Não estavam nem mesmo sob qualquer tipo de perquirição judiciária. Só seriam culpados se, vivos, tivessem sido processados, julgados e condenados, com o que estariam presos, não mortos. Mas foram assassinados num gigantesco e macabro ato de marketing político, impulsionado pelo sadismo de uma cultura que existe à revelia da lei mais civilizatória já inventada - aquela que diz que a vida humana é o bem mais preciso de toda e qualquer sociedade."
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Léo Bueno é autor da Terra Redonda Editora





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