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A memória política na poesia de Guanaíra Amaral

Urariano Mota

A lembrança mais nítida, a melhor lembrança que tenho de Guanaíra vem da música de Paulinho da Viola. Na casa onde ela morava com a mãe, houve uma vez uma festa em que bebemos somente batida de limão, forte, ácida e calorosa. Eu lembro de que me acerquei de uma pequena radiola e descobri discos inteiros de Paulinho da Viola, o compositor que me falava mais de perto dos meus desencontros. Lembro de que ouvi muitas vezes, quase bêbado, quase em sonho “Num samba curto”, sentado no chão, como se quisesse ali me esconder:


“Só me resta seguir

Rumo ao futuro

Certo de meu coração

Mais puro”.


E agora vamos a outros pontos do sentimento da memória. Quem não conhece Guanaíra saiba que ela era magrinha nos anos 1970, e nesse particular não mudou. Baixinha, franzina, ela é uma energia que parece nascida de 7 meses, e por isso continua até hoje a nascer para o mundo. Imaginem. Ela é frágil no corpo, mas isso engana. Ela é forte e grande, crescida pela vida de guerra política no Brasil e pelo estudo. Vaidosa da aparência, reage quando desejo saber sua idade: “Que pergunta!”, responde. Mas é sincera, até para mostrar que não liga pra essa bobagem, e fala que tem 73 anos. Está certa, porque ninguém lhe dá essa idade, e sobre isso não se fala nem se nota. O mais importante: Guanaíra é médica psiquiatra, atendeu a soldados da guerra do Vietnã, na Austrália, e a torturados no Brasil.


Quando a conheci, ela era cunhada de Jarbas Pereira Marques, um dos mortos sob tortura, no massacre da Granja São Bento. Mas como dizê-lo? Guanaíra passa pelo trauma com a destreza de quem assiste a um filme de terror. Que viveu, e por isso trabalhou como psiquiatra contra a violência infame e covarde, sempre.


Se tais marcas da sua vida nós não soubéssemos, talvez não entendêssemos sob que mistério se faz uma poesia tão boa de direitos humanos.

Contraponto, a poesia de Guanaíra Amaral, é militante, sem qualquer obediência à última moda. É poesia militante porque é histórica, memória da ditadura, dos traumas que passaram por nós e não saem. Se não, sintam, olhem e reflitam.


De lá da Austrália me chegou. Com 14 horas de diferença do fuso horário, a poesia que é um apelo humano em versos. Chegou, Guanaíra. Chegou ontem, chega hoje, agora, amanhã e depois.


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Urariano Mota é jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.

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