Raquel Raichelis
O trabalho como dimensão vital e perene do gênero humano assume no atual contexto de crise estrutural do capital um sentido de urgência em seu desvendamento crítico. Principalmente quando tratamos do significado do trabalho reprodutivo das classes trabalhadoras voltado para gerar e socializar novas gerações, alimentar crianças, manter os afazeres domésticos, cuidar de idosos, garantir laços afetivos etc. E se complexifica quando constatamos que esse trabalho é exercido majoritariamente por mulheres em espaços distantes do mercado formal de trabalho e não alcançados pela proteção social pública.
O trabalho reprodutivo tem sido historicamente uma condição necessária ao funcionamento e continuidade da sociedade capitalista, mas o Estado e o capital se desobrigam cada vez mais de financiar políticas de cuidado e de reprodução social das classes trabalhadoras, delegando à esfera privada, e especialmente às mulheres, em geral de forma não remunerada, a tarefa de reproduzir a força de trabalho para o capital. Por isso, como adverte Bhattacharya (2023, p. 27), “um quadro analítico de reprodução social que vai além do trabalho assalariado e dos espaços de produção sugere uma compreensão mais robusta do trabalho humano”.
O trabalho de reproduzir a vida voltado à manutenção diária e intergeracional da força de trabalho, delegado desproporcionalmente às mulheres, permaneceu historicamente na invisibilidade das relações sociais desenvolvidas na esfera doméstica, mas em estreita relação com o que acontece no mundo da produção (masculino e público), evidenciando que as relações entre exploração, opressão, dominação e alienação são intrínsecas à dinâmica de acumulação capitalista assentadas em corpos femininos particularmente racializados, generificados e territorialmente situados.
O livro Zungueira, de Indira Monteiro Félix, originalmente sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP, é uma contribuição original e valiosa para tornar visível a luta das mulheres zungueiras pela reprodução social da vida em atividades de comércio ambulante nas ruas de Luanda, capital de Angola e centro econômico do país. Como nos informa Indira “os termos zunga e zungueira evocam alteridade, traços de uma cultura secular incrustados no núcleo da moderna economia informal urbana de Luanda. Assim, a expressão zungueira identifica a mulher que zunga, enquanto o termo zunga é usado para adjetivar o ato de zungar, termo da língua nacional kimbundo (okuzunga), que significa rodar, girar, ou deambular, expressão identificada como sinônimo de venda ambulante’’.
Em seu livro, Indira nos explica que o trabalho informal exercido pelas mulheres remonta à sociedade colonial e pré-colonial de Angola, expressão da divisão social e sexual do trabalho na qual a atividade das mulheres lavadeiras, costureiras, peixeiras ou quitandeiras já constituía a base para a sobrevivência de muitas famílias. E observa que a guerra e as lutas pela independência de Angola só fizeram aumentar esse fardo. E que mesmo em tempos de paz, no pós-1975, o trabalho informal permaneceu como alternativa e, para muitas mulheres, a única possibilidade de sobrevivência das famílias. As crises cíclicas que se sucederam, sejam as decorrentes das lutas políticas internas ou da crise global do capital em 2007/2008, que aprofundaram o desemprego e a precarização da vida das classes trabalhadoras, exponenciaram ainda mais o trabalho informal – a zunga – nas ruas de Luanda, inclusive com a presença de crianças, jovens e ex-combatentes.
Inspirada nas análises de Telles (2010), Indira problematiza o lugar ambíguo do comércio ambulante das zungueiras, situado nas fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito, principal alvo da violência urbana, da ação dos fiscais encarregados de varrer das ruas a pobreza escancarada, a ser mantida na invisibilidade por meio de políticas higienistas comandadas por um Estado repressor e desprotetor de sua população. Nessa disputa pelo espaço público está presente também a luta pelo direito à cidade como bem comum, em contraposição à cidade mercadoria hegemonizada pelos interesses do capital e do lucro sem limites.
Como nos adverte Indira, as mulheres participantes da pesquisa relatam experiências de trabalho informal desde a infância, depois de adultas, como mães na educação dos filhos e na venda de produtos em sua residência, perspectiva que pode se estender durante toda a vida até a velhice. Quem já esteve em Luanda (como eu) não pode deixar de se emocionar ao ver as fotos das mulheres zungueiras registradas pela autora, perambulando e deambulando pelas ruas com seus filhos nas costas ou com o peso das cestas em suas cabeças. Elas são um registro eloquente e emblemático das figuras femininas que se destacam na caótica paisagem urbana das ruas centrais da cidade, pelo colorido das roupas e dos panos a enrolar suas cabeças e corpos, pelo gingado de seus corpos negros a equilibrar o peso do trabalho que maltrata a saúde e faz adoecer. Discriminadas pelo gênero, muitas vezes confundidas com delinquentes, moradoras das periferias precárias da cidade de Luanda, carentes de quase tudo que é necessário para a reprodução da vida, essas mulheres encontram no trabalho da zunga em meio ao desgaste e a exaustão, uma faísca de autonomia e liberdade, como destaca Indira em sua análise. Desenvolvem assim “coágulos de sociabilidade utópica” quando ingressam no espaço público, no encontro entre pares, na cumplicidade de gênero e de classe estabelecida entre as mulheres zungueiras para driblar as agressões e humilhações, na solidariedade coletiva contra as violências cotidianas, a projetar novas trajetórias e lutar por novos futuros para seus filhos, ainda que o futuro pareça bloqueado, nas palavras de Dardot e Laval (2017).
O estudo de Indira desnuda também a ausência do Estado angolano para responder às demandas do trabalho, e a ineficácia de políticas públicas voltadas às necessidades sociais da maioria da população, como políticas de emprego e renda, de educação, saúde e assistência social, de infraestrutura urbana, de segurança pública, de cultura etc. E sua inoperância para atender as reais necessidades das mulheres, em especial das mulheres zungueiras, considerando a violência que sofrem não apenas da repressão do Estado e das extorsões dos próprios fiscais a seu serviço, mas também da violência doméstica de maridos e companheiros, resultado da persistente presença do machismo patriarcal nas relações familiares e sociais.
Por último, uma nota sobre a pesquisa e a pesquisadora. O estudo realizado pela Indira é um rico testemunho de que os objetos de pesquisa não são aleatórios, mas, de certa forma, se impõem às pesquisadoras e pesquisadores por meio de suas vivências que mobilizam indagações e inquietações que precisam ser desvendadas por meio da construção de novos conhecimentos e saberes. Foi nessa verdadeira aventura em busca de suas sujeitas de pesquisa, nos lugares mesmos em que elas zungam (nas ruas e praças da cidade), que Indira, jovem mulher negra embebida de suas próprias experiências em meio às lutas anticoloniais de libertação de Angola, se envolveu intensamente, rompendo com a desconfiança das próprias entrevistadas, munida de seus meios de trabalho (gravador, diário de campo), mas também de seu conhecimento, de suas emoções, medos e expectativas, aberta ao vir a ser da história construida nas ruas de Luanda por essas mulheres zungueiras e guerreiras na luta pela vida.
Por todas essas razões sou grata a Indira pela oportunidade de ter podido compartilhar essa aventura do conhecimento como sua orientadora. E agradeço o convite para prefaciar esse livro, o que me encheu de alegria e emoção.
Convido leitoras e leitores a embarcarem nessa aventura! O resultado é mais do que compensador!
Referências
Bhattacharya, Tithi. Mapeando a teoria da reprodução social. In: Bhattacharya, Tithi (org.). Teoria da reprodução social – remapear a classe, recentralizar a opressão. São Paulo: Elefante, 2023.
Dardot, Pierre e Christian, Laval. Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.
Telles, Vera da S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010.
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Raquel Raichelis é professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – PUC-SP e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão.
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