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Origens dos EUA, o Coringa e o ocaso da supremacia branca

A consciência política do povo já superou o mito da supremacia branca, sua lealdade aos opressores e ao capital internacional e suas demais mentiras

Por Franklin Frederick (Jornal GGN - 27/10/2019)


«Nas raízes do capitalismo encontram-se não apenas a escravidão e a supremacia branca, mas também o ‘ethos’ do gangster.» Gerald Horne


O filme ‘Coringa’ apresenta um fenômeno contemporâneo presente em vários países, mas que só pode ser compreendido em sua complexidade através da história das origens dos EUA.

O historiador Afro-Americano Gerald Horne argumenta no livro ‘The Counter- Revolution of 1776: Slave Resistance and the origins of the United States of America’ que o movimento pela independência dos EUA nasceu, por um lado, do receio das classes ricas da colônia de um crescente movimento abolicionista na metrópole, a Inglaterra, que poderia acabar com a base de sua riqueza – os escravos. Por outro lado, a Inglaterra também impedia o avanço dos colonos para o oeste, que deveria permanecer como território indígena. Para Horne, a guerra pela independência dos EUA  foi em parte uma ‘contra-revolução’ liderada pelos ‘pais fundadores’ com o objetivo de preservar o seu direito de escravizar outros povos, sobretudo africanos, e de continuar a expandir a jovem nação para o oeste, roubando mais terras dos povos indígenas onde implantar mais trabalho escravo.

Em um outro livro, ‘The Apocalypse of Settler Colonialism: The Roots of Slavery, White Supremacy and Capitalism in 17th Century North America and the Caribbean’, Horne resumiu assim este processo:

«(…) em 1776, eles (os pais fundadores ou a elite econômica da colônia) deram o último golpe e exibiram o seu novo patriotismo ao expulsar Londres (o poder colonial) das colônias ao sul do Canadá, convencendo os iludidos e ingênuos – até hoje – de que esta pura manobra para se apossar de terras, escravos e lucro tenha sido de alguma maneira um grande salto adiante para a humanidade.»

Neste contexto ocorreu um outro processo de relevância fundamental para os dias de hoje: o nascimento do poderio militar dos EUA. O exército dos EUA teve sua origem na guerra pela independência contra os britânicos, que foi também uma guerra contra a imensa maioria de escravos africanos que se aliaram ao Império Britânico – que prometeu a sua liberdade – e contra os muitos povos indígenas que também se aliaram aos britânicos – conscientes do que viria à seguir para eles assim que a nova república se tornasse independente. E com efeito, logo após a vitória contra os britânicos e a paz estabelecida, o recém criado exército dos EUA  engajou-se em sua nova tarefa: a guerra genocida contra os povos indígenas para garantir a expansão territorial da nova república.

Em ‘The First Way of War: American War Making on the frontier, 1607-1814’ outro historiador, John Grenier, argumentou como as forças armadas dos EUA foram forjadas nas guerras genocidas contras os povos indígenas norte-americanos, onde praticamente todos os meios de destruição eram permitidos, toda a brutalidade era possível e não havia distinções entre populações civis e combatentes. Um dos métodos utilizados pelas forças armadas dos EUA contra os povos indígenas foi  o da destruição de suas plantações e reservas alimentares, levando à derrota pela fome, método muito utilizado e aperfeiçoado décadas depois pelos EUA na guerra do Vietnã, fazendo com que os EUA sejam talvez o único país do mundo a especializar-se na guerra contra o Reino Vegetal.  Na verdade, uma linha histórica ininterrupta leva das guerras contra os povos indígenas  até a guerra do Vietnã. Os embargos econômicos mais recentes contra Cuba e Venezuela são apenas uma outra forma deste método, os objetivos continuam os mesmos – causar a fome, punir as populações civis para submete-las – e estiveram presentes desde a origem do poderio militar norte-americano. A exterminação dos povos indígenas era algo tão central na política da época que ter participado das campanhas militares contra os indígenas era praticamente um pré-requisito para tornar-se candidato à Presidência da Nova República. Andrew Jackon, sétimo presidente dos EUA, talvez seja o que melhor represente o que era de fato este novo país. Jackson era um rico proprietário de terras e escravos,  liderou tropas durante a Guerra contra o povo Creek, que levou à conquista de muitas terras hoje pertencentes aos estados de Alabama e Geórgia. Ele também liderou as tropas dos EUA na guerra contra o povo Seminole, entre outras. Na Presidência, Jackson continuou sua cruzada contra os povos indígenas. Há um interessante episódio na conhecida série de TV  ‘House of Cards” em que representantes indígenas visitam a Casa Branca. Como parte dos preparativos da visita, a equipe da Casa Branca retira o retrato de Andrew Jackson da parede, aparentemente para não ofender os indígenas – um raro momento de lucidez em tais meios. E foram os seguidores de Andrew Jackson que fundaram o Partido Democrata dos EUA…

Para garantir uma ‘frente única” entre os colonos contra os povos indígenas, por um lado, e assegurar a prática da escravidão por outro, os ingleses forjaram uma ilusória ‘aliança’ para além das classes sociais, entre os “brancos” – a supremacia branca – que legitimava e permitia a exploração, roubo ou extermínio de todos os que não eram “brancos”. De acordo com Gerald Horne, esta ‘política de identidade militarizada’ – a supremacia branca – estava na base das ocupações coloniais já em 1676, levando à criação de um país do ‘homem branco’, um primeiro estado ‘apartheid’, exemplo a ser seguido  pela África do Sul. A violência contra os povos indígenas e a violência inerente à economia escravocrata tornaram-se elementos comuns, ‘normais’ na mentalidade branca dos EUA até os dias de hoje. Para Horne – e agora nos aproximamos do filme ‘Coringa’ – uma das últimas expressões da ‘supremacia branca’ foi a eleição de Donald Trump, pois uma parte do eleitorado “não conseguiu superar o veneno da supremacia branca (…) Ou seja, as sementes do fiasco eleitoral de novembro de 2016 nos Estados Unidos, onde os menos privilegiados de descendência européia, incluindo mais da metade das mulheres deste grupo, elegeu  um vulgar bilionário como seu tribuno, têm suas origens nesta coalizão transversal às classes sociais que fomentou a ocupação colonial no século dezessete às custas dos povos indígenas e dos escravos africanos.”

Arthur Fleck, a personagem do filme, é apenas mais um dos milhões de homens brancos pobres e abandonados pelo sistema.E não é por acaso que, no filme, praticamente todos que entram em contato real, emocional, com Arthur Fleck, são Afro- Americanos, inclusive a única mulher por quem ele se interessa. Deste modo  o filme  coloca o branco Arthur Fleck no meio de uma comunidade pobre afro-descendente, ou seja, segundo o mito da supremacia branca, completamente fora de seu lugar de ‘direito’. A assistente social que lhe permite obter os remédios de que necessita é Afro-Americana e, ao comunicar a ele o fechamento do centro de atendimento – mais um resultado das políticas de austeridade do neoliberalismo – ela comenta: ‘ Eles não dão a mínima para pessoas como vc. Ou como eu.’ – ‘Eles’, no caso, sendo uma clara referência aos poderosos, ao 1%. Há uma permanente possibilidade de acolhimento para Arthur Fleck dentro da comunidade Afro-Americana, como a assistente social reconhece ao situar os dois como vítimas do mesmo sistema. Mas Arthur Fleck é incapaz de ver ou compreender sua situação no contexto mais amplo que o abriria para a dimensão da solidariedade com a comunidade Afro-Americana e com outros. O que  ele tenta, seguindo as ilusões de sua mãe adotiva que se tornam também suas, é ser aceito novamente pela comunidade branca bem sucedida. A ‘aliança’ para além das classes sociais que liga os brancos no mito da supremacia branca ainda é suficientemente presente no inconsciente de Arthur Fleck para levá-lo até Thomas Wayne buscando o ‘reconhecimento’ de  seu ‘direito natural’ ao acolhimento na comunidade branca, uma forma de atualização da ‘aliança’  da supremacia branca, exatamente como fizeram tantos brancos empobrecidos e marginalizados que votaram em Donald Trumpo.Para reforçar a imagem de unidade desta comunidade branca, a cena do diálogo com Thomas Wayne acontece em um teatro cheio apenas de brancos que celebram o  sucesso de sua classe social. Thomas Wayne não reconhece sua “paternidade” – o simbolismo aqui é claro – de Arthur Fleck e, ainda pior, recusa violentamente qualquer contato com ele, revelando assim a mentira da ‘aliança’ branca, o mito da supremacia racial como ligação entre os brancos para além das classes sociais.O soco deThomas Wayne mostra que tal ‘aliança’ nunca existiu.

Mas há um gesto de solidariedade mostrado no filme que realmente pertence à ‘aliança branca’: ao saber que Arthur Fleck sofreu uma agressão na rua, um de seus colegas de trabalho  lhe oferece uma arma para se defender – o gesto solidário por excelência da ‘aliança branca’, o mesmo gesto que Bolsonaro, numa escala muito maior, fez no Brasil quando prometeu colocar armas mais facilmente ao alcance de todos, sobretudo de seus apoiadores, que prontamente recompensaram esta ‘solidariedade’ ajudando a elegê-lo.

O momento em que o mito da ‘aliança branca’ realmente explode no filme é a sequência da luta no metrô. Três jovens brancos, bem vestidos e visivelmente bem sucedidos, provocam e insultam uma mulher – se julgando no completo direito de fazê-lo, o comportamento “normal” do macho heterossexual branco, nos EUA como no Brasil. Arthur Fleck, com a sua risada nervosa, atrapalha os três jovens que se voltam contra ele. Arthur Fleck é óbviamente pobre, um palhaço, de uma classe social muito inferior à dos três jovens yuppies que passam a agredi-lo violentamente – traindo como Thomas Wayne a ‘aliança branca’ – mas Arthur Fleck está armado e, pela primeira vez, dá vazão aos seus anos de frustração, de raiva reprimida, de incompreensão acumulada – e mata seus agressores. Para Arthur Fleck este momento é liberador e a partir daí ele se transforma, se sente mais forte mas também “enlouquece” , o simbolismo utilizado, creio, para mostrar o preço emocional pago por Arthur Fleck por trair a sua parte na ‘aliança’ branca. Sua violência de oprimido se dirigiu contra os próprios brancos, não contra os imigrantes latinos, negros ou indígenas – os alvos ‘normais’ da violência da supremacia branca. A  consciência pública branca e liberal, representada no filme pela personagem de Robert de Niro , Murray Franklin, um ídolo por quem Arthur Fleck  também almeja ser de alguma forma reconhecido , condena o assassinato dos três ‘jovens promissores’, pois neste caso a solidariedade da ‘aliança’ branca realmente existe – como solidariedade de CLASSE – os três eram ‘bem sucedidos’, obviamente membros da classe dominante. Três brancos pobres como Arthur Fleck assassinados no metrô certamente não teriam nenhuma atenção da imprensa,  foi a classe social dos três assassinados que despertou, por um  lado, a simpatia dos Murray Franklins, e, por outro lado, a revolta popular que é o pano de fundo do filme. Arthur Fleck várias vezes se declara sem nenhuma consciência ou objetivo político. Os Arthur Flecks da vida real dificilmente votam mas, se o fazem, votam em Donald Trump ou Jair Bolsonaro. A revolta dos Arthur Flecks se limita a espalhar a violência, a ‘dar o troco’ , a criar o caos, ela não tem conteúdo político, não almeja mudar o sistema, os Arthur Flecks sequer tem a menor idéia de como o sistema realmente funciona, apenas se sentem injustiçados, frustrados por algo a que só podem reagir com violência. Arthur Fleck é o fascista potencial, o que os une, nos EUA como no Brasil, ainda é a mística da supremacia branca, a sensação de pertencer à classe dominante, como uma espécie de ‘ direito natural’  ao privilégio, à riqueza, ao prestígio e ao poder.  Para o sistema, os Arthur Flecks têm uma enorme importância, pois eles não apenas elegem os Donald Trumps e os Jair Bolsonaros, permitindo que a oligarquia internacional do capital continue através deles a dominar o mundo; ainda mais, os Arthur Flecks tem o papel fundamental de DESPOLITIZAR a sociedade, de impedir  o foco da consciência pública sobre as questões reais. E é  através da violência, da intimidação, do ataque às instituições, à cultura e a tudo que ameace sua identidade ‘branca’ que os Arthur Flecks cumprem estes dois papéis. Os Thomas Wayne sorriem, os 1% se regozijam diante da estupidez tão facilmente manipulada a seu favor. E não há Thomas Wayne apenas em Gotham City, temos muitos deles aqui no Brasil também, como os Dórias e Lucianos Hucks que, por sua vez, também geram os nossos próprios Batmen /Bruce Waynes : os Deltan Dallagnols, os Sérgios Moros, sempre dispostos a combater a corrupção em nome do capital.

Mas  ‘Coringa’ mostra também, ainda que apenas obliquamente, a possibilidade de redenção de Arthur Fleck. E se Arthur Fleck conseguisse  sair de sua prisão emocional, de seu ‘ envenenamento’ – usando a expressão de Gerald Horne – pela supremacia branca, e buscasse ajuda e acolhimento na comunidade Afro-Americana? Os Afro-Americanos tem uma longa história de luta e consciência política, eles enfrentaram desde o começo a violência da  supremacia branca, sabem o que ela significa, conhecem sua  amplitude e também suas principais fraquezas. Acima de tudo, os afro-americanos sabem muito bem que a luta é política. O maior pesadelo, a maior ameaça para o sistema nos EUA, é justamente a união solidária entre os Arthur Flecks e a comunidade afro-descendente – e a consequente politização que esta união implica. O sistema, a oligarquia fianceira internacional, pode muito bem conviver com a violência caótica, com breves surtos de destruição e conflito social – na verdade, esta violência é até útil para o sistema e para a oligarquia, entre outras razões porque ela pode ser utilizada como pretexto para mais repressão e mais violência por parte das forças reacionárias. Mas o que o sistema não pode suportar é a rebelião COM CONTEÚDO POLÍTICO – como vemos agora no Chile, na Argentina ou no Equador.

‘ Coringa’ mostra o ocaso da supremacia branca pois mesmo os Arthur Flecks já estão percebendo que esta ‘aliança solidária’ entre os brancos, que por tanto tempo os alimentou até tornar-se o fundamento de seu próprio ser, não passa de uma mentira urdida pelos 1% –  majoritariamente brancos – para melhor explorar todos os outros. A consciência e os movimentos indígenas nos EUA, que não aparecem no filme pois a violência da supremacia branca conseguiu exilar os indígenas sobreviventes fora das cidades, também tem desafiado cada vez mais os donos do poder e suas mistificações.

E enquanto isso na América Latina, na Argentina, no Equador , no Chile, na Bolívia e na Venezuela, há algum tempo que a consciência política do povo já superou o mito da supremacia branca, sua lealdade aos opressores e ao capital internacional e suas demais mentiras. Esta consciência vai continuar a se expandir, mesmo no Brasil, apesar dos esforços em contrário dos grandes meios de comunicação, de certas igrejas e do Governo Bolsonaro. Há uma humanidade plural, rica e orgulhosa de suas muitas cores, gêneros e modos de ser que cada vez mais assume o controle político sobre o seu próprio destino. É esta humanidade que, com muita clareza, determinação e alegria, está derrotando o fascismo e os mitos que o apóiam.

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