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Memórias do golpe

O golpe militar de 1964 que implantou uma ditadura de 21 anos no Brasil fará 58 anos amanhã. Estimulada pelo meu amigo Paulo Moreira Leite decidi postar aqui um texto que escrevi há 8 anos atrás quando o golpe completava 50 anos. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!

Laís Abramo, 3/5/2014


Eu tinha pouco menos de 10 anos e morávamos em Brasília desde junho de 1962. Meu pai e minha mãe tinham pouco mais de 30 anos, meu irmão Mario quase 8, minha irmã Lena tinha 5 anos e meio e a Bia era um bebê de 6 meses e a Marta ainda não tinha nascido. Meus pais davam aulas na Universidade de Brasília, a Unb. Faziam parte da equipe de professores contratada por Darcy Ribeiro, que havia percorrido o país em busca de homens e mulheres que aceitassem o desafio de construir uma nova universidade, moderna e comprometida com os objetivos do desenvolvimento nacional e da justiça social, na também nova e moderna capital do Brasil. Brasília naquela época era uma cidade já monumental, mas também pouco mais que um grande acampamento circundado pelo cerrado e pelos amplos horizontes do Planalto Central. Na juventude dos seus pouco mais de 30 anos, eles estavam cheios de energia e entusiasmo para enfrentar esse desafio com toda a dedicação. Antes disso, meu pai havia estado em Brasília em 1960 chefiando a equipe de reportagem do Estadão que cobriu a inauguração da cidade e da qual faziam parte Vladimir Herzog e Fernando Pacheco Jordão. Por esse trabalho, ganhou o “Prêmio Esso de Reportagem” de 1960.

Tenho lembranças muito felizes desse tempo. Gostava da escola, de ir para a Pracinha, de brincar com meu irmão e minhas irmãs e também com os meninos e meninas da quadra naqueles espaços verdes que naquela época só tinham grama e nenhuma árvore, e que possibilitavam um contato precioso entre as crianças. Em casa ouvíamos Louis Armstrong (o “Cachorrão”, como dizia meu pai, especialmente o Louis and the Bible, que até hoje é o meu disco preferido dele), Juca Chaves (Presidente Bossa Nova a outras músicas mais românticas), a músicas do CPC da UNE (“subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido, é o meu país”.... ). Sentia saudades dos meus primos, avós, avô, tios e tias que haviam ficado em S. Paulo, mas me sentia bem e muito protegida na minha família.

Mas nuvens carregadas começaram a se acumular no céu do Planalto Central e logo a situação mudou. Lembro do tio Cláudio (Claudio Abramo), que foi passar um fim de semana conosco, vindo de S.Paulo, e as longas conversas entre ele, minha mãe e meu pai. Ele se despediu de nós na frente do sobradinho em que vivíamos no que hoje é a 707 Sul dizendo que a situação estava muito grave e que deveríamos esperar pelo pior. Estávamos nos últimos dias do mês de março, e os semblantes dos 3 nessa hora estavam muito tensos.

Lembro, depois, dos tanques militares percorrendo a W3 e o impacto que isso me causou. Lembro do meu pai e da minha mãe falando sobre a invasão da Unb por tropas do Exército e como eles tentaram defender e proteger os estudantes nessa hora. Lembro que meu pai sumiu de casa uns dias (minha mãe diz que foram só dois; mas a minha sensação é que foram muitos mais), depois voltou, depois sumiu de novo, e o desassossego que isso me provocou. Aqui minhas lembranças se misturam com o que me foi contado pela minha mãe, tempos depois: inquieta com a ausência do meu pai por vários dias, um dia eu disse pra ela, assim, na lata: “Você vai me dizer agora onde o meu pai está”. Ela relata a angústia que sentiu na ocasião: apesar de não ter duvidado, por nenhum momento, em me contar a verdade, não sabia como dizer para uma menina de 9 anos que o pai dela estava preso, mas não por ser um bandido ou por ter feito algo errado. Não sei como ela fez, e não me lembro exatamente do que ela me disse, mas tenho certeza de ela teve a sensibilidade e a sabedoria para conseguir seu objetivo: me contou que ele estava preso, eu evidentemente fiquei triste e assustada e provavelmente sem entender direito o que estava acontecendo; mas nunca fiquei com a sensação de que ele tinha feito algo errado. Muito pelo contrário.

Lembro também do dia em que eu fiquei mais assustada: estávamos brincando na Pracinha 21 de Abril (eu, Mario, Lena, nossas amiguinhas Lilia e Lúcia); minha mãe estava conosco, tomando conta da Bia que estava no carrinho e conversando com a mãe das meninas, D. Nélida. Eu sabia que ela era enfermeira. E quando a ouvi dizer à minha mãe, em voz baixa e grave, “se precisarem dos meus serviços eu estou à disposição”, aí sim eu tive medo. Vieram à minha cabeça aquelas imagens de filmes onde as enfermeiras cuidam dos feridos de guerra e eu senti que a situação era mesmo de muito perigo.

Lembro de um fim de semana, no período em que meu pai estava preso, em que estávamos em casa com minha mãe e a Glorinha, esposa do Teodoro, colega do meus pais na Unb. Ela estava grávida e ele também havia se escondido. Elas dividiam conosco papéis e mais papéis com textos mimeografados e nos pediam para ajudar a rasgá-los e depois molhar e fazer não sei o que de papel machê. Isso tinha um lado divertido, de brincadeira (poder rasgar papel à vontade e fazer bagunça com água), mas eu tinha a nítida sensação de que havia algo grave e de risco nisso tudo. Depois meu pai foi solto e logo depois demitido da Universidade. Durante um tempo não podia sair de Brasília por estar respondendo a um inquérito policial militar (os famosos IPMs). Quando essa proibição terminou, meus pais decidiram voltar para S. Paulo. Com muita tristeza, amargura e uma sensação de derrota.

Minha mãe retomou seu emprego de funcionária do governo do Estado e meu pai ficou desempregado. Ele havia trabalhado 10 anos como jornalista no Estadão antes da mudança para Brasília, mas, naquele momento todas as portas se fecharam para ele porque toda a grande imprensa havia apoiado o Golpe. Foram momentos muito difíceis. Retomamos nossa vida escolar, de crianças, a convivência com a família e tudo, mas lembro como se fosse hoje da sensação sombria que marcou aqueles meses.

Até que minha mãe recebeu um convite de Jorge Hage, querido baiano que eles haviam conhecido na Unb, e de quem tinham ficado amigos (ele era “instrutor” na faculdade de Administração, onde minha mãe era professora). O convite era para trabalhar em um projeto de reforma do governo do estado da Bahia. Meus pais nos deixaram uma semana com minha avó e foram lá conferir a oferta. Voltaram entusiasmados e decididos a empreender a aventura de uma nova mudança, dessa vez para a Bahia. A família ficou apreensiva: o que eles, com quatro filhos, entre 10 (eu) e 1 ano (a Bia), iam fazer tão longe da família e numa terra tão desconhecida como a Bahia (sinais do etnocentrismo paulista)? Mas eles estavam decididos. Meu marido, Álvaro, exilado pela ditadura chilena aos 23 anos, por um período de 14 anos, sempre diz que, no nosso caso, como o Brasil é tão grande, a ida para a Bahia equivaleu naquele momento a um “exílio interno”.

Meu pai decidiu que não voltaria a Brasília enquanto a ditadura não acabasse. Manteve essa decisão por mais de uma década, até que, em 1975, veio passar as férias na cidade com minha mãe e minhas irmãs menores. Mas se recusou, na ocasião, a voltar ao campus da Unb.

Eu só voltei a Brasília muito tempo depois, em 1992, para um seminário. Vim morar aqui com meu marido, minha filha e meu filho em 2004. Quando meus filhos entraram na Unb e, especialmente, quando minha filha Laura recebeu o título de Bacharel em Ciências Econômicas da Unb, à minha alegria e emoção de assistir e compartilhar com ela o encerramento de uma fase importante da sua vida e sua formação, somou-se um sentimento de reparação. Era como se meu pai também estivesse de alguma forma voltando à essa universidade através dos meus filhos.

Minha mãe, Zilah Wendel Abramo, descreve assim a experiência dela e de meu pai da vinda para Brasília e para a Unb e da posterior expulsão, em um texto por ela escrito em 1978:

TEXTO ZILAH WENDEL ABRAMO (1978)

“Era uma vez um grupo de gente que abandonou tudo o que tinha – não era muito, era apenas tudo: a família maior, amigos, empregos, para tentar a grande aventura de criar uma Universidade. Não eram atraídos por salários especialmente altos, ou por glórias acadêmicas maiores do que as que poderiam pretender nos seus estados de origem. Além do espírito de aventura, movia-os apenas a Esperança. A Fé veio depois, à medida em que o campus ia sendo literalmente construído, à medida em que currículos inéditos iam sendo montados, à medida em que toda a estrutura inovadora ia mostrando suas potencialidades e seu comprometimento com a realidade nacional

O começo foi difícil: foi preciso suportar a precariedade das instalações, as distâncias infinitas, a poeira vermelha que marcava tudo e transformava as crianças em bichos estranhos, a secura do ar que rachava a pele. Foi preciso acumular o cansaço das aulas a preparar, da organização a montar, da mudança, da instalação, da adaptação sem a ajuda providencial de sogras, tias, irmãs e cunhadas. Foi preciso aprender a dar aulas em salas improvisadas, a falar mais alto do que os tratores que abriam as ruas do campus, a improvisar textos mimeografados para suprir os livros que não existiam. Foi preciso vencer as inevitáveis divergências (cada um tinha a “sua Universidade” na cabeça) e a novidade das ciumeiras regionais.

Mas quanta compensação! A alegria de ver crescer, a um tempo, a cidade e um projeto de trabalho, as amizades que se consolidavam em torno das realizações e das dificuldades comuns, a emoção de acompanhar o desenvolvimento das árvores e dos primeiros gramados plantados, a experiência enriquecedora de conviver com gente de todo o Brasil (o que, pela primeira vez, evidenciou para a gente o vergonhoso provincianismo paulista), o horizonte infinito, as ocultas e maravilhosas flores do cerrado e, acima de tudo, aqueles alunos. Acima de tudo o entusiasmo com que eles se dispunham a edificar a Universidade, literalmente com as próprias mãos, muitos deles adultos, pais e mães de família, que encontravam enfim a oportunidade de estudar que lhes havia sido negada nos seus estados de origem. Com eles e para eles qualquer sacrifício era válido, qualquer esperança viável.

Até que um dia, essa gente teve que assistir à brutalidade do cerco militar e da invasão. O campus ocupado, professores e alunos presos ou afastados arbitrariamente, caixotes de livros e papéis de trabalho vasculhados à procura de inexistentes armas. E um inquérito ridículo que nada concluiu. Mais uma vez a compensação veio dos alunos, que, inquiridos, não disseram uma só palavra que pudesse incriminar os professores.

Enfim, em episódios sucessivos que duraram até hoje, a destruição, o esmagamento sistemático do único projeto de Universidade digno desse nome que jamais foi tentado no Brasil.”


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Laís Abramo é uma das autoras de RECEITAS DA ZILAH E UMAS HISTÓRIAS SOBRE ELAS. publicado pela Terra Redonda e à venda em nosso site.

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