Romance do escritor catarinense Caléu Moraes é uma aula magna sobre crítica literária e mercado editorial
Por Guilherme Mapelli Venturi, no Jornal Opção, 22/05/2022
Livros e textos, quaisquer que sejam, necessitam da inter-relação entre autor, leitor e crítico, envolvendo práticas e estudos muito mais completos e complexos do que se imagina. Em outras palavras, nem sempre o que parece é real e, em alguns momentos, o passado, o presente e o futuro, quando não ocorrem individualmente, coexistem, sendo percebidos de diferentes maneiras por cada indivíduo. Logo no prefácio e ao longo dos capítulos, às vezes mais perceptível, às vezes menos, notam-se todas essas constatações, mas será mesmo que as interpretações dos leitores coincidem com a intenção do autor, que é verdadeiro aquilo que se lê e se entende? Aos desatentos, duas dicas: nem toda pergunta terá uma resposta, o objetivo de algumas perguntas é chamar a atenção ou provocar a curiosidade, e não buscar (talvez, dar) respostas.
Apesar de não ser um de seus objetivos, a crítica literária também acaba servindo de publicidade, positiva ou negativa, à obra que expõe ao leitor; por isso, o crítico, ao mesmo tempo em que não deve se exceder nos elogios nem nas más impressões, dizendo somente o necessário, também não deve escolher por somente aquele ou este lado.
Elogiar e criticar são os ingredientes essenciais para sustentar a base da crítica, ou seja, o crítico deve destacar tanto as qualidades quanto os defeitos da obra, mas sem registrar as más impressões pelo viés pessoal, simplesmente porque não gostou; portanto, uma das tantas funções dessa atividade é falar ao leitor o que falta no livro ou o que poderia ser melhorado, mais ainda, exemplificar como a ausência ou a melhoria de elementos narrativos poderia ocorrer.
Atribuir adjetivos como bom e ruim a um título não é o único e melhor caminho, até porque a crítica não é exclusivamente o gosto e a opinião pessoais; além disso, um bom sucesso e uma boa avaliação não são garantias de qualidade e de outras características universais e atemporais, afinal, tudo muda e se diferencia, inclusive as preferências de um leitor para outro; ou então, até mesmo as análises feitas pelo profissional, de acordo com leituras e tempos distintos.
Crítica não é apenas contar o enredo da história, é contá-lo aos poucos ao longo do texto, omitindo o que for necessário, mas não tudo, e comprovando os dizeres com passagens do livro analisado. Assim, este ofício é uma mescla de resumo e resenha. De igual maneira, deve haver uma alternância e um equilíbrio entre sinopse, opinião pessoal e informações técnicas (acadêmicas), pensando em inúmeras estruturas, desde a linguagem até o público-alvo, incluindo suas formações escolares.
Quase sempre autor e narrador estão em lados opostos, pois enquanto o primeiro é quem escreve a história, o segundo não passa de um personagem; mas mesmo que ambos compartilhem de igualdades e/ou semelhanças, não significa dizer, necessariamente, que são a mesma coisa, afinal, sempre haverá ficção, por mínima que seja.
Em uma biografia, por exemplo, o biógrafo é um – o autor, e o biografado é outro – o narrador. Já em uma autobiografia, o autor conta sua própria história, portanto, também é o narrador. Perceba que nos dois exemplos a ficção se faz presente mais em decorrência da verossimilhança do que da invenção.
“Este livro é como um diário. O diário da minha pesquisa. O diário de campo dum antropólogo. Mas não é bem isso. Porque não tem a ver com antropologia, mas com literatura.” pg. 39 / Em resumo, há dois Lordes Nélsons, como há dois Wittegensteins: o grande navegador e o autor catarinense.”pg. 41
Ainda nessa seara, o leitor precisa saber separar o joio do trigo: é frequente que um autor seja depreciado por não representar, enquanto indivíduo, as mesmas condutas e ideologias esperadas por quem seria seu possível leitor. Ora, que impere a justiça e a sensatez: o ser que escreve é um escritor, um trabalhador, o que ele escreve é um produto; dessa maneira, se o autor não lhe agrada, não quer dizer, necessariamente, que a obra também seja ruim e cairá em seu desgosto; traduzindo, subjetividades (posicionamentos e comportamentos dos mais diversos) nada têm a ver com concretudes, com fatos (in)questionáveis, mesmo que não unânimes (conhecimentos e técnicas de teoria literária e de escrita criativa).
O livro “As aventuras de Lorde Nélson” traz duas importantes rupturas: a primeira relacionada ao título que, por alguns instantes e apesar do substantivo “aventuras” pode remeter à narrativa épica como Dom Quixote, de Cervantes, mesmo que apenas por impressão ou minimamente; a segunda relacionada ao fato de ser uma trilogia de um único volume.
Na verdade, todo o enredo enunciado pelo título, talvez tenha sido uma estratégia utilizada pelo autor para despistar e brincar com o leitor, camuflando a real intenção da obra: discorrer tanto sobre os papeis do crítico literário quanto os caminhos e efeitos da crítica literária, a fim de enfatizar e promover a literatura brasileira.
Logo de início, no prefácio, escrito precisa e brilhantemente por José Carlos Mariano do Carmo, nos deparamos com o título “A literatura como processo desviante”, o qual provoca estranhamento, vanguarda, mudança de pensamentos, catarse, epifania (condições próprias da boa literatura). E por falar nisso, só esse título já renderia bons debates.
Será o primeiro narrador autobiográfico, ou seja, um pseudônimo do próprio autor? Talvez o Id, o Ego e o Superego? Será o narrador, patriota, xenofóbico, egoísta e egocêntrico? Será a obra, o diário humorado de um escritor, ou um ensaio sobre aventuras sexuais e processo de escrita (inclusive sobre mercado editorial)? Será a História da Literatura Catarinense, a história do narrador, menosprezando os demais autores da região; uma autocrítica sobre a qualidade de sua própria escrita; ou a valorização dos escritores catarinenses?
“O narrador, sem nome, procura o melhor escritor de Santa Catarina, o próprio Lorde Nélson. pg. 9 / Eu desistira do meu romance estupendo para escrever uma História estupenda da Literatura de Santa Catarina, o livro que ninguém teve coragem de escrever, porque os autores catarinenses são poucos, e dos poucos, são poucos os que prestam, e dos que prestam, são poucos os que não se odeiam a ponto de não incluir um colega numa História da Literatura de Santa Catarina.” pg. 47
O narrador sem nome, professor universitário de economia, mesmo tendo escrito um livro sobre taxação, e outro, o qual fez grande sucesso e lhe rendeu muito dinheiro, embora não seja sobre sua área de pesquisa e formação, resolve pagar para que escrevam sobre a literatura catarinense. A primeira parte, então, traz todos os acontecimentos ocorridos com o narrador até seu encontro com Lorde Nélson, único escritor um pouco mais estimado pelo narrador; sendo, portanto, o escolhido para escrever a História da Literatura Catarinense.
Inclusive, este hábito de muitos escritores pagarem para que escrevam suas histórias, gera e necessita de reflexões polêmicas, a começar pelo fato de que quem escreve não leva crédito algum, ou seja, a fama e a maior parte do dinheiro ficam com quem paga. Portanto, quem deve(ria), de fato, ser reconhecido e lucrar como autor? Será que o pagante tem mesmo conhecimentos e técnicas literárias, e também, será que ele contribui de alguma forma (qualquer e por mínima que seja) para a escrita? Qual a razão para tal feito?
Os relatos se concentram, sobretudo, nas aventuras sexuais do narrador, incluindo uma relação homossexual e uma relação (entre tantas) heterossexual, ambas com menores de idade.
Por outro lado, todo esse enredo é apenas um fio condutor por onde passam dilemas universais: tendências suicidas, ideologias políticas, dogmas religiosos, atos de mutilação, pedofilia (ou sexo consentido com menor), preferências sexuais, etc. Nesse sentido, assim como na realidade, o narrador, não somente por si só, mas também, a depender de contextos, de comparações e da interpretação de diferentes leitores, vivencia paradoxos; ainda mais levando em conta Lorde Nélson, misterioso personagem, o qual não se sabe (nem se saberá) ser, de fato, um personagem à parte ou o próprio narrador-autor sem nome.
No segundo capítulo (segundo narrador) as personalidades catarinenses começam a aparecer e, principalmente, questões sobre o mercado editorial e literatura são aprofundadas, indagando tanto o escritor quanto o leitor a respeito das relações e das distinções entre filosofia e literatura. Tem-se, ainda, a morte de Lorde Nélson (surpreendente, por sinal), motivo para dúvida e curiosidade ainda maiores, para quem lê.
O terceiro narrador, costurando os outros dois, além de continuar discorrendo e refletindo sobre a morte de Lorde Nélson, opõe-se ao segundo, assim como as escolas literárias; afinal, aponta os problemas do universo livreiro, quer sejam dos editores, dos autores e/ou dos leitores.
Engana-se quem pensa ser esta obra apenas um livro ficcional, ou somente um livro teórico, afinal, é um liquidificador literário, tanto pelas diversas modalidades narrativas (do diário ao ensaio, por exemplo) quanto pelas inúmeras técnicas e inovações utilizadas; e ainda, pelos assuntos abordados, mesmo que superficialmente.
Quanto à interpretação e à recepção da obra, é inquestionável a mínima distância entre os opostos, considerando os leitores, principalmente nos dia de hoje, nos quais dizer e agir é o mesmo que pisar em ovos, pois os discursos e as condutas são facilmente distorcidas e ilhadas de militâncias.
Por essas razões, o livro é ao mesmo tempo, polêmico, indigesto, controverso, inquestionável, digestível, entre outros adjetivos; mas não é tudo. A trilogia única de Caléu é um manual prático de teoria literária, de escrita criativa; é uma aula magna sobre crítica literária e mercado editorial. Consequentemente, extrai-se, ora do texto explícito ora das entrelinhas, certezas, enganos, identificação, preconceitos, alegrias, dores, conquistas, erros, acertos, aprendizados; além de muitos dos problemas pelos quais o escritor passa durante sua carreira (desvalorização do próprio texto, síndrome do papel em branco, etc), das visões de alguns críticos em relação ao seu ofício, da realidade e das deficiências do mercado editorial.
Qualquer que seja o leitor, a não ser com a degustação atenta desta prosa inovadora, as respostas para as premissas aqui lançadas e o meio da história permanecerão como suposições. Igualmente, apesar de o encontro entre o primeiro narrador e Lorde Nélson não ter sido exatamente como se esperava, revelando surpresas, o livro termina com final aberto, ou seja, o desfecho da história e dos personagens fica por conta da imaginação de quem lê.
Em uma obra nada é por acaso, tudo tem uma razão e é minuciosamente planejado pelos envolvidos: autor e editor, quando publicada por editora comercial; somente autor, quando publicada de forma independente. Sendo assim, por um lado, tantos acertos justificam a riqueza atribuída ao título analisado; por outro, alguns pontos poderiam ter sido elaborados seguindo outros estilos, correndo o risco tanto de boa recepção quanto de fracasso. Sem mais delongas, leia e tire suas próprias conclusões.
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Guilherme Mapelli Venturi é graduado em Letras, pós-graduado em Língua e Literatura. Atualmente, é graduando em Biblioteconomia e Ciência da informação. Escritor, revisor, diagramador, resenhista e gestor da Nós textos & cia.
Caléu Moraes é autor da Terra Redonda Editora e sua obra prima "Declínio e Queda de Mim Mesmo" pode ser adquirida no site da editora. O livro "As aventuras de Lorde Nélson" é distrbuído gratuitamente e pode ser solicitado pelo email contato@terraredondaeditora.com.br (enquanto houver estoque disponível).
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