Por Sergio Papi
Uma das consequências - aliás, uma das mais irritantes - do terrível mal que vem assolando o planeta é a disfunção capilar e das células queratinizadas, sintoma pouco descrito nas crônicas médicas, pelo que pude acompanhar. Os pelos de meu corpo começaram a crescer de maneira desmedida, assim como minhas unhas. Tornou-se impossível corta-los, de forma que em poucos meses em isolamento social, vim a me tornar um verdadeiro lobisomem. Minha família, que há muito desejava se livrar de mim, devido a minha pouca utilidade nos serviços domésticos e a quase nenhuma colaboração no orçamento caseiro, - eu não conseguia mais trabalhar - aproveitou-se para me jogar no olho da rua, como um cão vadio. Tempos difíceis... A vagar sem destino certo pela cidade, maltrapilho e coberto por ruiva pelagem, já um pouco grisalha, com as unhas dos pés e das mãos a fazer curvas de tão grandes, buscando de porta em porta o alimento diário. Triste situação para quem, embora falido, pertencera em épocas ainda recentes à classe dos nobres. Com algum tempo de solidão, mesmo que falasse comigo mesmo, comecei a apresentar problemas sérios de comunicação para com os outros, meus amigos de cruz, e me vi praticamente emudecido. As palavras foram sendo substituídas por grasnares e latidos. Era natural que o pessoal me confundisse com algum animal. Minha pelagem, a cada dia mais vistosa, acabou por despertar a atenção de curtidores, que tencionam me caçar e matar, para me esfolar a pele e salgar o que resta de minha pobre carne, nem assim tão saborosa, e vender no mercadinho. Tenho escapado desses olhares cobiçosos mimetizando minha figura nos viadutos cinzas da cidade. Tempos difíceis...
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Sergio Papi é escritor e artista plástico, autor de 99 histórias e Depois de destruída, à Terra., à venda no site da Terra Redonda Editora
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